A vitória de Lula foi sólida, legitimada pelas instituições e respaldada pelo mundo. Nossa democracia venceu o ataque mais duro que já sofreu
A vitória do presidente Lula é robusta, está consolidada e o fato de a diferença ter sido estreita não muda essa realidade. O presidente Bolsonaro, como é normal nesses momentos, vai perder força a cada dia. O poder se alimenta do futuro do poder, os holofotes já estão em outra direção. Quando as urnas falam, um democrata ouve. Bolsonaro ainda não ouviu. E isso por maus modos políticos e por falta de inclinação democrática. O governo vai querer tumultuar a transição, mas os servidores que tiverem noção de que servem ao país poderão superar esse bloqueio às informações. Uma nova maioria vai se formar em torno de Lula, com parte dos parlamentares hoje com Bolsonaro se reposicionando.
A democracia brasileira superou, com esta eleição, o mais duro ataque já recebido desde a Constituição. Ficaram muitas sequelas. Em alguns momentos ela parecia fazer água. É preciso fortalecê-la agora. Há muito trabalho para as instituições. A captura da Procuradoria-Geral da República, o uso abusivo de alguns órgãos como aconteceu com a Polícia Rodoviária Federal em pleno dia do voto, a supressão da barreira de que em ano eleitoral não se cria benefícios, comandantes militares que não souberam a fronteira entre governo e Estado, há uma lista de rupturas com as regras democráticas feitas por Bolsonaro que não podem ser repetidas.
O eleitor sempre distribui o poder. As urnas, renegadas por Bolsonaro, deram a ele vitória de importantes aliados, e a conquista do governo do maior estado do país. Nem todos os que se elegeram ou reelegeram no campo da direita farão oposição. A declaração ágil e clara do presidente da Câmara, Arthur Lira, na noite do domingo, já mostrou que o centrão vai se posicionar. A tendência natural é os parlamentares símbolos do bolsonarismo formarem uma falange de extrema-direita, com pessoas como os senadores Damares Alves, Sergio Moro, Hamilton Mourão e os deputados Eduardo Pazuello e Ricardo Salles. Eles estarão juntos a parlamentares eleitos por clubes de tiros, por organizações do crime ambiental e as figuras mais ligadas ao bolsonarismo raiz como Carla Zambelli.
Mas, afora os mais extremistas, parte grande dos que formam hoje a base de Bolsonaro deverá se aproximar do governo Lula. Portanto, é um equívoco achar que Lula terá uma governabilidade mais fraca. Ele saberá formar e gerir uma nova coalizão.
A maior vitória da direita foi o governo de São Paulo. Se o governador eleito, Tarcisio Gomes de Freitas, administrar como um negacionista será terrível para o estado que tem o Butantan, a Fapesp e a USP. Isso será trágico para o país também. Mas seu primeiro discurso foi de que administrará com quadros técnicos. Será mais inteligente se for pragmático ao invés de replicar a nível estadual o fundamentalismo bolsonarista. Afinal, Tarcísio chegou a postos altos na administração durante o governo Dilma. É jovem e tem ambições. Os governadores do Rio e de Minas não farão oposição ao governo federal. Nada têm a ganhar alinhando-se a um grupo que estará fora do poder federal.
O mundo se reconectou com o Brasil tão logo o resultado foi proclamado. A sucessão imediata de congratulações foi uma demonstração clara de que o mundo estava mesmo com saudades do Brasil que sabe negociar, que aposta no multilateralismo, que tem protagonismo e não escolhe ser pária. Foi uma demonstração do prestígio internacional de Lula, mas também um reconhecimento da diplomacia profissional brasileira.
Um grande momento desse protagonismo recuperado será vivido no Egito na COP 27 na semana que vem. O governo brasileiro ficou à deriva nas últimas reuniões climáticas, fez truques contábeis para diminuir os compromissos que havia assumido no Acordo de Paris, e nada apresentava a não ser o avanço do desmatamento. Agora, a Noruega já mandou um sinal de que quer reativar o Fundo Amazônia. Os governadores do Norte têm um acordo pronto desde a última COP, que liberará US$ 1 bilhão para programas de proteção, e que dependia de ser aprovado pelo Itamaraty. Essa reconexão com o mundo será também proveitosa.
Os quadros políticos indicados por Bolsonaro podem querer atrapalhar, mas existe uma lei que regulamenta a transição. E qualquer bloqueio de informação pode ser atenuado pelos funcionários. Afinal, os servidores públicos são a inteligência da máquina. Eles ficam, os políticos passam. (O Globo – 01/11/2022)