Reinaldo Azevedo: Lula não é um herói a ser punido; é só um eleito contra a herança maldita

Tentar impor a Lula que governe o país com o Orçamento de 2023 corresponde a exigir que faça o que nem Bolsonaro faria

Fosse a Presidência da República uma distinção apenas pessoal, Lula poderia estar a flanar de felicidade, não é? A forma como foi recebido na COP27, o seu discurso impecável, a reação do mundo à sua fala… “Exuberante”, “rockstar”, “herói”.

Herói? Pois é. A resposta “Duzmercáduz”, como se percebe, não é boa. E já que se empregou aqui a palavra “herói”, a imprensa antevê o pior e decide atuar como o coro a comentar o desfecho trágico daquele que há de ser punido por sua “húbris”, que é a soberba de afrontar os deuses olímpicos. Ocorre que Lula só está confrontando a herança maldita de Jair Bolsonaro e um Orçamento de mentira.

Como sabem os especialistas da área, ninguém consegue parar o sistema punitivo do drama trágico. O subgênero tem um propósito didático. A catarse existe para restaurar a ordem. E convenham: esse tal Lula está aí há muito tempo a arrostar com a máquina do mundo. Seu último feito foi ficar 580 dias preso em razão de uma condenação sem prova e saltar da cela para a Presidência.

É evidente, por essa abordagem inicial e por coisas que tenho escrito e dito em outros sítios, que considero histérica e precoce a gritaria que se promove em nome da responsabilidade fiscal. E é certo que não a desprezo. Reconheço, como se pudesse ser diferente, que a gastança irresponsável é o caminho do desastre. O que pergunto é se Lula fez essa escolha. E me parece que não.

Já sugeri aqui que os críticos da PEC de Transição imponham a si mesmos a exigência que se faz aos estudantes na prova de redação do Enem: apresentem o problema e também uma solução. A peça orçamentária de 2023 é uma mentira inventada por Paulo Guedes em conluio tácito com “Uzmercáduz”.

O Bolsonaro das PECs ilegais do ICMS e dos benefícios enviou ao Congresso um Orçamento que prevê, a partir de janeiro, R$ 405 para o Bolsa Família, não os R$ 600 que passaram a ser pagos a menos de três meses da eleição, embora anunciasse em campanha que não haveria a redução do valor. Custo anual da diferença: R$ 52 bilhões. Existe esse dinheiro? Não. O coro ficou mudo.

Não se prevê aumento real do mínimo, mais uma vez, ainda que, no debate da Globo, o presidente tenha prometido R$ 1.400. A três dias da eleição, Guedes deu uma dica ao chefe. Deveria dizer ao petista: “Se você paga um salário mínimo de R$ 1.200, eu pago R$ 1.400; se você paga R$ 1.400, eu pago R$ 1.500”. Segundo o ministro, isso seria possível porque eles roubam menos. Eis a qualidade do debate.

Tentar impor a Lula que governe o país com o Orçamento de 2023 corresponde a exigir que faça o que nem Bolsonaro faria. E isso expõe uma das faces do presidente: a do farsante. Há a do perverso. O “Casa Verde Amarela”, que é a demolição do Minha Casa Minha Vida, sofreu um corte de 95%. Reserva-se ao programa a soma de R$ 34,1 milhões.

O Orçamento do Farmácia Popular despencou de R$ 2,04 bilhões para R$ 842 milhões. Os 21 milhões que dependem de remédios para hipertensão, diabetes e asma têm de entender que “todo mundo morreu um dia”. É o governo do coveiro. Reserva-se para o ano que vem um investimento correspondente a 0,22% do PIB: R$ 22 bilhões. São alguns exemplos do descalabro.

A dupla Bolsonaro-Guedes pode ser acusada de quase tudo, menos de ser fiscalmente responsável. Ocorre que, à diferença de Lula, o atual ministro da Economia fala tudo o que “Uzmercáduz” querem ouvir, ainda que não pratique quase nada, exceto a irresponsabilidade social. Ele é, assim, como os idealistas criticados por Marx e Engels em “A Ideologia Alemã”: está mais interessado em colonizar espíritos e em provar a superioridade de sua filosofia, com suas respostas simples e erradas para problemas difíceis, do que em ser eficaz.

Como inexiste governo, a não ser para dar amparo a golpistas, Lula vive a insólita circunstância de já ser presidente estando na oposição. E se cobra dele uma resposta para a herança maldita de Bolsonaro, mas reverenciando a doxa guediana, que prevê o apagão social contra o qual o petista se elegeu. Lula não é um herói a desafiar os deuses. Está negociando um Orçamento realista para governar o Brasil. Que não seja punido por isso. (Folha de S. Paulo – 18/11/2022)

Reinaldo Azevedo, jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Leia também

Lira teme efeito Orloff ao deixar comando da Câmara

NAS ENTRELINHASO presidente da Câmara se tornou uma espécie...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

A ponte Krenak

Com Ailton Krenak, a Academia Brasileira de Letras recebe...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

19 Anos sem Karol Wojtyla: Recordando o Legado de João Paulo II

A jornada rumo ao sacerdócio e, eventualmente, ao cargo...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!