Luiz Carlos Azedo: O imponderável nas eleições em dois turnos

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Com 200 anos de Independência, o Brasil tem instituições historicamente constituídas. Já houve muitas controvérsias sobre isso, uma das maiores foi na década de 1920, quando Oliveira Viana lançou Populações Meridionais do Brasil (Senado Federal), obra na qual dizia que o nosso sistema político era uma cópia barata dos regimes republicanos norte-americano e europeus. Viana distinguia três tipos diferentes no país — o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Os principais centros de formação do matuto são as regiões montanhosas do estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de São Paulo, região de influência hegemônica na História do Brasil.

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isso exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”

A partir dessa conclusão, Oliveira Viana concebeu o seu “autoritarismo instrumental”, na visão do falecido cientista político carioca Wanderley Guilherme dos Santos: militares e elite agrária deveriam promover radical intervenção do Estado na vida política e social do país e criar bases sociais culturalmente aptas a sustentar um regime liberal. Não por acaso, tornou-se o ideólogo do Estado Novo de Getúlio Vargas, após a Revolução de 1930, e do futuro regime militar, que vigorou no Brasil de 1964 até a eleição de Tancredo Neves, em 1985.

As ideias de Oliveira Viana foram muito aclamadas na época. Somente o jornalista Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista, teve a ousadia de criticá-lo. Seu pensamento teve notável influência na “modernização conservadora” do país e merece ser estudado até hoje, pois é a matriz mais autêntica das ideias de direita que estão aí vivíssimas, nas escolas militares e no chamado bolsonarismo. Trata-se de uma vertente autoritária do pensamento positivista, que serviu como uma luva para a projeção nacional do “castilhismo” de Getúlio Vargas como alternativa de poder.

Nos meios acadêmicos, existe um amplo consenso sobre o caráter nefasto do Estado Novo, mas não em relação à Revolução de 1930, saudada como a ruptura que concluiu a nossa “revolução burguesa” e abre-alas da modernização do Estado e da economia. No livro História da Riqueza do Brasil, Cinco séculos de pessoas, costumes e governos (Estação Brasil), Jorge Caldeira nos mostra que a República Velha também teve o seu valor, principalmente a partir do Acordo de Taubaté, que mudou a política de exportação e teve notável papel na formação de capital para a nossa modernização, sem falar no fato de que havia uma economia de sertão, grande responsável pela existência de nosso mercado interno.

Maioria silenciosa

Chegamos ao ponto. Nosso progresso depende de um justo e democrático equilíbrio entre o Estado e a sociedade. Essa é a chave para entender a importância da Constituição de 1988 e do voto popular na construção desse equilíbrio. Nosso Estado democrático de direito, com toda as suas vicissitudes, garante a democracia brasileira e suas instituições políticas, algumas das quais seculares, como o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF). E busca superar fatores que serviram de instrumentos para crises e rupturas da ordem democrática, entre os quais, dois têm a ver com a eleição que se realiza hoje: a existência de uma só votação para presidente da República e vice e a realização de dois turnos, caso nenhum dos candidatos alcance mais de 50% dos votos no primeiro turno.

A eleição de João Goulart como vice de Jânio Quadros, graças a uma manobra de sindicalistas paulistas, que fizeram uma dobradinha pirata, a chapa Jan-Jan, foi um dos fatores que nos levaram ao golpe de 1964, porque havia uma situação na qual o presidente que renunciou havia sido eleito pela direita e seu sucessor, que assumiu legitimamente o poder, pela esquerda. Agora, ambos são eleitos pelos mesmos eleitores. Outro fator de instabilidade era o fato de o presidente eleito por ser o mais votadonnão representar maioria dos votantes. Mesmo Getúlio Vargas, em 1950, por exemplo, teve 48% dos votos. Agora, não; precisa da maioria dos votantes, no primeiro ou no segundo turno.

O imponderável é o voto secreto, direto e universal, em urna eletrônica, à prova de fraudes. Em momentos como os que estamos vivendo, de radicalização política, o voto que decide é o mais silencioso. A alternância de poder é um dos princípios da democracia; o outro, o respeito aos direitos da minoria, principalmente ao dissenso. Vale a vontade do eleitor. Quem ganhar, leva. Seja agora ou no segundo turno. (Correio Braziliense – 02/10/2020)

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