As contingências desafiantes, e até mesmo surreais, do nosso tempo demandam o ecoar de um brado peculiar neste 7 de Setembro: Democracia ou democracia! E isso no emblemático bicentenário do “Independência ou Morte”, que simboliza a conquista da autonomia nacional, em 1822, e no ano em que temos eleições decisivas para Poderes.
Ou seja, no Dia da Independência, além de festejarmos uma conquista memorável, é imprescindível reverberar a defesa incondicional do “Estado de Direito Sempre”, avalizado, entre outros, por eleições livres, com suporte da urna eletrônica. Resta evidente que a ação em prol das instituições democráticas passa também pela constante busca do aperfeiçoamento e de atualização.
É lamentável que, diante de tragédias como a fome, a violência, a destruição ambiental e os problemas crônicos da saúde e da educação, estejamos despendendo energias para defender uma conquista que já deveria estar consolidada entre nós: a democracia. Importa lembrar que, apesar de imperfeito, como toda obra humana, o sistema democrático é o melhor que a civilização pôde constituir para organizar a disputa e o exercício do poder em prol da cidadania.
E trabalho é o que não falta na direção de um Brasil justo e inclusivo. Trata-se de uma agenda gigantesca e que deveria ser absoluta prioridade neste debate eleitoral. Em linhas gerais, o Brasil, que historicamente desperdiça oportunidades, vai ter de encarar uma realidade nada amigável, nos planos nacional e internacional.
O mundo está andando à moda de caranguejo, de lado, sem o menor resquício da bonança de tempos atrás. A pandemia deteriorou todos os indicadores, e ainda com um rebote inflacionário. A Europa já cambaleava; com a invasão russa na Ucrânia, o quadro só piora. A política de juros dos Estados Unidos desconcerta ainda mais os passos planetários. China e Ásia, como um todo, não apresentam o desempenho de outrora. Frentes populistas de acenos totalitários minam a democracia. E o modelo de globalização, que já vinha se corroendo, vê sua cadeia de suprimentos entrar em colapso.
No nosso país, o tempo não será menos pedregoso. Apesar de melhoras no mercado de trabalho e de desempenho do Produto Interno Bruto (PIB), já convivemos com um descrédito crescente quanto aos rumos da economia. Especialmente em razão de medidas inconsequentes e eleitoreiras, sem lastro técnico, que comprometem as finanças públicas e desancoram expectativas.
A educação básica sofreu, no nosso país, um baque muito mais tsunâmico do que no resto do mundo durante a pandemia. Nossas crianças e jovens estiveram longe das salas de aula por período muito extenso. O Sistema Único de Saúde (SUS) passou por uma prova de fogo, ficando nítido que precisa ser repensado e robustecido. O que dizer da violência e da segurança pública, cujos indicadores e realidade são trágicos? O enfrentamento dessas e de outras questões muito preocupantes, infelizmente, perde protagonismo ante a polarização em curso. São desafios que se avolumam e se apresentarão ainda mais problemáticos em 2023.
Independentemente da liderança que saia vencedora das urnas, o dever de casa se impõe e exige que se “chegue chegando”, como se diz. Não há tempo a perder, nem escusas acerca de uma possível ignorância desta dura ambiência que nos espera e cujas raízes já se vêm firmando há muito. Também é preciso parar de repetir teimosamente os erros do passado, ainda que em novas embalagens, assim como devemos focar no aprendizado com iniciativas bem-sucedidas, aqui e lá fora.
Nesse sentido, o paradigma da economia descarbonizada se coloca como muito benéfico ao Brasil, que tem know-how em bioeconomia e acervos ambientais que lhe permitem assumir um lugar entre os protagonistas desta nova era. Temos a tarefa de enfrentar efetivamente as criminalidades que assolam os nossos biomas de forma nunca vista e muito crítica – aqui, um outro viés desafiante para a Nação.
As demandas nos campos da infraestrutura e da digitalização também se colocam como um espaço de oportunidades, desde que se construa uma boa regulação com segurança jurídica e se avance nas reformas estruturantes inadiáveis, alcançando o sistema tributário e as máquinas governativas, por exemplo.
De toda sorte, se não garantirmos a normalidade institucional e democrática, estará comprometida a execução de nossas tarefas urgentes, com a transformação de potencialidades em oportunidades. Além disso, teremos uma nação dilacerada no coração de sua alma, que são as garantias republicanas e seus preceitos de liberdade. Sem falar na piora da imagem internacional do País, algo gravíssimo num mundo conectado.
Assim, que ecoe a voz do Brasil que acredita que podemos e merecemos ir além do que já fomos em 200 anos. Que seja retumbante o não aos retrocessos: Democracia ou democracia! (O Estado de S. Paulo – 06/09/2022)
Paulo Hartung, economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do Renovabr, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)