Fernando Gabeira: O novo e o estável nas eleições

A eleição começou para valer, nas ruas, nas redes, com propaganda e debates na TV. Há muito tempo que observo nela uma característica singular: a tendência à estabilidade nas opções de voto.

Claro que coisas novas podem acontecer. Mas os dados que indicam estabilidade são abundantes. O primeiro deles é o fato de estarem em confronto dois nomes populares: Lula e Bolsonaro. Ambos têm um trabalho para mostrar: o de Lula realizado durante oito anos, o de Bolsonaro de 2019 para cá.

A tendência é reforçada pela sucessão de pesquisas e, nelas, além da pontuação geral, ressalto o fato de que 80% dos eleitores parecem já ter decidido seu voto.

Outro fator que, pela minha experiência, aponta para uma estabilidade: quem está no governo e começa mal tem chances reduzidas de reverter a situação.

Quase sempre, nas eleições, candidatos da oposição crescem e ameaçam os governos, porque são ainda desconhecidos e trazem a esperança de fazer melhor.

Bolsonaro tentou alterar o quadro: atropelou a lei eleitoral, o equilíbrio das contas públicas e até a própria Constituição. Até o momento, o auxílio emergencial não abalou a estabilidade, no sentido de que não alterou as chances de Bolsonaro ultrapassar seu adversário. Parte da ineficácia eleitoral do artifício parece ser a compreensão das pessoas de que o auxílio não foi realmente destinado a elas, mas sua função é garantir o êxito eleitoral de Bolsonaro. Foi decidido tardiamente e dura só até dezembro.

Fatores de estabilidade parecem estar presentes também nas eleições para o Congresso. Aqui, a situação é um pouco diferente: os artifícios são mais eficazes para bloquear a renovação.

O fundo eleitoral, de R$ 4,9 bilhões, é totalmente controlado pelas burocracias partidárias, o que deve favorecer os que já têm mandato. Mas talvez o fator mais importante para evitar mudanças seja o próprio orçamento secreto. A divisão de R$ 17 bilhões entre deputados e senadores deu a eles um instrumento poderoso para a vitória nas urnas. Os escândalos em torno dessa massa de dinheiro público espalhado pelo País começam a pipocar. Mas ainda acontecem muito longe dos olhos da grande imprensa: no Maranhão, em Alagoas. Não há tempo para usar este mecanismo como um instrumento eleitoral contra os assaltantes dos cofres oficiais.

Apesar de tudo, algumas novidades acabarão abrindo caminho neste campo minado. Uma delas é a força da presença feminina. No debate na Band, as duas mulheres, Simone Tebet e Soraya Thronicke, se destacaram. Bolsonaro sempre se destacou por temer o socialismo. Mas tudo indica que ele teme mais ainda a ascensão das mulheres.

Hoje, o eleitorado feminino já é maioria no Brasil. Os velhos hábitos que apontam para uma supremacia masculina já não têm mais espaço. O mais assustador, na cabeça de Bolsonaro, é o fato de que não é um perigo que ele possa rotular como comunista. As duas mulheres são de centro e centro-direita. O tema de combate ao machismo transcendeu aos limites da esquerda.

Vou refletir sobre isso em outro momento, mas tudo indica que a sociedade patriarcal corre o risco de desaparecer sem que o próprio capitalismo seja ameaçado. É possível até que se enriqueça com uma utilização mais vasta do talento social disponível.

Outras novidades já presentes na sociedade ainda não se apresentaram com força na campanha. A questão ambiental, se levarmos em conta que foi centro do programa de Joe Biden, aparece rapidamente – menções ainda de pé de página.

Da mesma forma o racismo, tão presente no cotidiano do Brasil, não foi mencionado nos debates e nas entrevistas.

Ainda há muito caminho pela frente. Uma das pesquisas qualitativas divulgadas na imprensa revela que o sentimento de tristeza foi muito comum entre os espectadores do debate. Infelizmente, não há mais dados sobre as causas. Creio, entretanto, que há razões para um certo desalento. A dimensão da crise brasileira parece muito ampla diante da modéstia das ideias apresentadas.

Mas isso pode ser também uma decorrência do formato dos debates. Há pouco tempo, perguntas e respostas. A verdade é que as atenções começam a convergir para a escolha dos dirigentes e o Brasil, neste campo, tem razão para algum otimismo. As audiências para o tema político estão aumentando, foi assim com as entrevistas e com o debate, sem contar o fato de que mais de 2 milhões de jovens eleitores se alistaram, apesar de o voto ainda não ser obrigatório para eles.

Estamos fazendo esta eleição ao mesmo tempo que comemoramos os 200 anos de independência. Muitos problemas que tentamos resolver na época ainda rondam o País. Um deles é o controle social do Orçamento, presente nas revoltas de fevereiro de 1821 no Rio. Os temas mais consultados no Google, depois do debate, foram orçamento secreto e sigilo de cem anos.

Se acrescentarmos ao orçamento secreto e ao sigilo de cem anos o fato de que Bolsonaro não divulga seus gastos pessoais, veremos que as aspirações de transparência que já apareciam no nascimento do País independente ainda não foram resolvidas.

Do grito do Ipiranga de Dom Pedro ao Posto Ipiranga de um presidente despreparado, foi um longo caminho ainda não concluído. (O Estado de S. Paulo – 02/09/2022)

Fernando Gabeira, jornalista

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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