Carlos Andreazza: O golpe é o orçamento secreto

Provocado pelo trabalho do repórter Breno Pires, li o relatório do TCU sobre a prestação de contas da Presidência da República em 2021. O documento foi aprovado por unanimidade pelos ministros da Corte de contas. Traz a mais completa explicação técnica de por que a emenda do relator, fachada para o orçamento secreto, é multiplamente inconstitucional.

Se já havia razões para declarar a inconstitucionalidade do bicho, com esse parecer o Supremo — se não quiser desrespeitar seu papel na República — tem obrigação de agir imediatamente. Ao listar cada uma das afrontas à Constituição, o relatório oferece fundamentação para que o STF desmonte o verdadeiro golpe.

É urgente. O golpe — aquele rompedor — é o orçamento secreto.

Ao mesmo tempo presidente do Supremo e relatora das ações que questionam o dispositivo, Rosa Weber, diante do ali exposto, não pode esperar eleição. Não há tempo para acomodação política. A emenda do relator mina a impessoalidade e a equidade progressivamente. Agora, em meio à campanha eleitoral, estão em curso empenhos de emendas do orçamento secreto — mais um movimento de imposição autoritária contra a paridade de armas na peleja por votos.

E logo virão as eleições para os comandos do Congresso — e o orçamento secreto é o fator de desequilíbrio em favor de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.

É multiplamente inconstitucional aquilo — o orçamento secreto — que dá encarnação à sociedade firmada entre o governo Bolsonaro e o consórcio parlamentar liderado por Arthur Lira e Ciro Nogueira; arranjo que favorece também estadistas de assessoria de imprensa como Pacheco. Muitos precisam do troço para ser competitivos. Não é apenas a reeleição de Bolsonaro o que está em xeque, mas a reeleição do controle sobre o esquema do orçamento secreto. Ou alguém duvida de que outro governo produziria um lira para chamar de seu e tocar a cousa?

O jogo é bruto.

O jogo é bruto, e a criança tem pai. O orçamento secreto foi criado por Bolsonaro. Sim, primeiramente ele o vetou. Arrependeu-se, porém. Era dezembro de 2019. Há documentação. Com exposição de motivos subscrita pelo general Ramos, o presidente assinou projeto encaminhando ao Parlamento o orçamento secreto como ora conhecido, uma perversão sobre a forma original da emenda do relator.

O TCU é explícito: o orçamento secreto viola a Constituição e mais duas leis. Explicito eu: a sociedade entre Planalto e o consórcio Lira/Nogueira tem como fundação um mecanismo que viola a Constituição, a Lei Complementar 141 e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A ver.

O orçamento secreto distribui dinheiros da Saúde — o que contraria os artigos constitucionais 195 e 198. Sendo mecanismo corrompido em instrumento patrimonialista para que sejam beneficiadas as paróquias de nogueiras e laranjas em detrimento dos adversários, a distribuição de recursos da Saúde via orçamento secreto compõe ataque à isonomia.

Recursos para o SUS devem respeitar critérios definidos em lei, conforme os artigos 17 e 30 da Lei Complementar 141. O orçamento secreto produz gastos de má qualidade e propicia a pulverização de corrupções miúdas de difícil fiscalização.

O mais danoso ataque do orçamento secreto não está apenas na obscuridade sobre os verdadeiros autores das emendas, que agride o princípio constitucional da transparência — os artigos 37 e 136-A. (E, ainda assim, o comando do Congresso respondeu à determinação molezinha de Weber por transparência com um misto de meia publicidade e forja de novas modalidades laranjais para ocultação dos reais patronos das emendas. Um esculacho.) A mais perigosa doença do orçamento secreto — nunca enfrentada pelo Supremo — está no caráter autoritário com que pouquíssimos monarcas decidem a destinação de bilhões, transformando mesmo o Orçamento, mais que em peça de ficção para a insegurança fiscal, em fraude contra o realismo orçamentário.

O orçamento secreto tem por natureza expandir-se tomando o espaço arreganhado pelo cancelamento — impossível — de despesas obrigatórias. Compõe fraude ao Orçamento porque ocupa o campo de gastos que terão de ser recompostos; porque vale-se de orçamento mentiroso que a realidade inflará. O orçamento secreto, intocável, empurra ao endividamento. Uma operação cujo conjunto infringe a LRF e os artigos 166 e 167 da Constituição.

O enraizamento feudal do orçamento secreto, para citar Élida Graziane, gerou aquilo que recente série do Estadão chamou de “deserto político”. Treze milhões de brasileiros, em 522 cidades de vários estados, esquecidos — punidos — pelos donos do Parlamento, os sócios de Bolsonaro, por não haverem votado nos senhores do Brasil ou em seus servos.

Isso — o orçamento secreto — tem de cessar. Já. Só o Supremo pode fazê-lo. É sua obrigação. (O Globo – 20/09/2022)

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