Fernando Gabeira: Uma carta e algumas notas pela democracia

Uma carta pela democracia será lida no dia 11 de agosto em São Paulo, e nesse dia, provavelmente, já terá 1 milhão de assinaturas. Nada mais importante neste momento em que Jair Bolsonaro chama embaixadores para atacar as urnas eletrônicas, numa indicação de que não aceitará sua provável derrota.

Um dos aspectos interessantes do documento é que, além da assinatura, ele pede uma vigília permanente pelo Estado de Direito, e isso é fundamental diante das ameaças.

Apesar de minha total concordância, gostaria de acrescentar algumas notas. É essencial defender o que temos de democracia no Brasil. Mas é ilusório supor que ela tenha atingido um estágio superior.

Em 2013, ela foi sacudida por manifestações que até hoje não conseguimos interpretar bem. Mas a intensidade e a extensão do movimento apontavam para grandes deficiências, que não foram satisfeitas; ao contrário, minha sensação é de que se agravaram com a escolha de Bolsonaro.

Nos movimentos de rua havia uma demanda por serviços públicos decentes. De lá para cá, apesar da boa performance do SUS durante a pandemia, nada melhorou. A educação foi para o espaço, com a escolha de ministros dedicados à guerra cultural ou a conchavos com pastores. Mesmo a saúde, colocada à prova, revelou indícios de corrupção e uma verdadeira batalha para que um governo negacionista se dispusesse a comprar as vacinas.

Também as demandas de combate à corrupção foram sepultadas. O que se viu, de lá para cá, foi um recuo em todos os níveis. Recuo na forma de leis, como a da improbidade administrativa ou mesmo a que desqualifica o uso de celular como prova de crimes.

O mais importante nesse campo, sem dúvida, foi a adoção de um orçamento secreto. É o instrumento mais suspeito da história recente do Brasil, e, no entanto, foi praticamente naturalizado. O Supremo pouco conseguiu no sentido de trazer luz a estes gastos paroquiais que detêm a parte do leão no orçamento nacional.

Os movimentos de rua em 2013 revelaram, principalmente, uma grande distância entre as pessoas e seus representantes. De um modo geral, políticos eram vaiados como uma punição por seu alheamento aos problemas reais.

Não há dúvida de que Bolsonaro se aproveitou do desgaste do processo, das lacunas do campo da democratização, inclusive no campo da segurança pública, no qual se apresentou como a única alternativa, apesar de equivocada.

O que aconteceu depois do esgotamento da experiência de redemocratização foi apenas uma falsa renovação na política brasileira. Com suas características populistas, Bolsonaro trouxe uma bancada inepta para a Câmara, parlamentares que foram eleitos apenas por terem colado sua imagem à dele.

O que era considerado a raiz do fracasso do chamado presidencialismo de coalizão – o toma lá, dá cá – acabou se fortalecendo com o franco domínio do Centrão, que praticamente tomou as rédeas do governo, incluindo postos-chave, além de grande parte do dinheiro público.

Os partidos políticos, tão criticados nas ruas de 2013, transitaram de eleições financiadas por empresários para o uso de recursos do Estado. E não foram nada modestos ao definirem um fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões para 2022.

Nada disso torna menos importante a defesa do Estado de Direito e da democracia. Mas a neutralização dos impulsos golpistas de Bolsonaro, assim como sua derrota eleitoral, apenas nos remetem para aquele momento anterior em que as pessoas na rua questionavam a qualidade da democracia brasileira.

Isso não significa que elas voltarão imediatamente ao estado de revolta, sobretudo porque haverá uma euforia pela superação de um governo tenebroso.

É uma ilusão pensar, entretanto, que tudo poderá ser como antes, que a política brasileira, após o fracasso retumbante de um falso projeto de renovação, poderá ser conduzida da mesma maneira que a conduzimos desde o movimento das Diretas até a captura do poder pela extrema-direita.

Nunca entendemos bem o que aconteceu em 2013. O que não significa que deixemos de nos esforçar para compreender aquilo que pode ser realmente um novo passo, uma defesa da estabilidade e sobrevivência da democracia brasileira.

Não tenho a pretensão de responder em detalhes a este desafio. Mas, para prestar serviços decentes, o Estado brasileiro tem de se reformar; para reaproximar-se das pessoas, o sistema político também terá de mudar.

Sepultado o golpe de Bolsonaro, garantidos o Estado de Direito e a democracia tal como a conhecemos hoje no Brasil, abre-se uma nova etapa na qual todos esses problemas, mais 33 milhões de famintos e cerca de 100 milhões em insegurança alimentar, estarão nos questionando: afinal, que democracia é esta, como poderá cumprir as promessas nascidas com o fim da ditadura?

A resposta terá de nascer de um grande esforço social no debate sobre uma agenda para o País, na renovação, ainda que modesta, do Parlamento, na recolocação de nosso lugar no mundo como potência ambiental – enfim, inúmeros passos para realmente acordarmos do pesadelo bolsonarista. (O Estado de S. Paulo – 05/08/2022)

Fernando Gabeira, jornalista

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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