Fernando Gabeira: Presença de Anitta na corrida eleitoral

‘O mundo começava nos seios de Jandira/Depois surgiram outras peças da criação’.

Esses versos do maior poeta da minha cidade natal, Murilo Mendes, me inspiram para dizer que, de certo modo, as eleições começam na voz de Anitta, e as outras partes da criação.

A cantora brasileira decidiu apoiar Lula, vestiu uma calça vermelha com uma estrela do PT.

Foi um grande impulso para Lula, pelo menos nas redes sociais, onde suas citações cresceram 30%.

Numa sabatina como candidato, Ciro Gomes lamentou que o apoio de Anitta tenha sido dado a outro que não ele. E Bolsonaro ficou furioso, mas aproveitou a popularidade da cantora para atacá-la por sua opção política.

Escolhidos, preteridos ou mesmo rejeitados, os candidatos não podem ignorar Anitta, que tem mais de 60 milhões de seguidores nas redes sociais.

Recentemente, no Rio, Anitta foi chamada a arbitrar a disputa pelo Senado, dividida entre Alessandro Molon, do PSB, e André Ceciliano, do PT. Molon pediu e ganhou o apoio da cantora.

Dificilmente um único eleitor tem tanta influência. Ela participou também da campanha vitoriosa que resultou em mais de 2 milhões de inscrições de jovens, que têm direito a voto, mas não são obrigados a votar.

Algumas vezes refleti sobre esse tema por aqui. Foi quando afirmei que Margaret Thatcher, apesar dos anseios puritanos, deixou uma Inglaterra muito mais liberal e diversa do que encontrou ao chegar ao poder.

Embora um pouco abstrato, um ponto que me parece básico é este: o avanço da economia de mercado dissolve a moral tradicional.

Não há base de comparação entre Thatcher e Bolsonaro. Mas o processo de mudanças na sociedade é ininterrupto, mesmo quando se chega ao poder com um projeto conservador.

Bolsonaro talvez desconfie disso. Nunca foi tão religioso como quer parecer, nunca cultivou uma visão tão rígida de família como propaga.

Como alguns programas sensacionalistas de rádio, ele utiliza e deforma fatos do cotidiano para assustar e se ligar a um público conservador.

Foi assim no princípio do governo com aquela postagem sobre golden shower, uma cena escandalosa que pretendia utilizar como se um homem fazendo pipi fosse algo que se encontrasse em cada esquina.

Ele se agarra desesperadamente à rejeição de Anitta porque sente que isso pode mantê-lo em evidência, apesar de tudo. Adora críticas de Leonardo DiCaprio, pois pode escrever em suas redes sociais: Outra vez, Leo? Como se tivesse uma grande intimidade com o ator, apesar da grande distância que os separa.

Bolsonaro garimpa críticas de atores americanos para usá-las em suas redes sociais. Foi assim com Mark Ruffalo, que disse apenas que Bolsonaro não respeita a democracia. Meses depois uma carta com quase 1 milhão de assinaturas confirma que o medo de Ruffalo é o de muitos brasileiros.

Mesmo quando quer se referir a um político como John Kerry, Bolsonaro confunde o nome com o de Jim Carrey, ator de “Debi & Loide”.

Não estou negando a importância do pensamento verdadeiramente conservador no Brasil. Minha experiência eleitoral mostrou que realmente tem um grande peso numérico.

Desde o Brasil Colônia, no entanto, com as visitas dos Inquisidores, existe uma constante tensão entre o desejo e a norma religiosa, entre liberdade individual e controle da sociedade.

As circunstâncias de 2018 permitiram que fake news como “kit gay”, “mamadeira de piroca” e outras variações ampliassem a influência da extrema direita. Mas o fato de o Brasil ser mais diverso e complexo coloca novos problemas que os extremos não conseguem captar. Não há espaço para uma política religiosa com um enfoque missionário que tente moldar o comportamento das pessoas.

Essa riqueza e variedade de comportamentos significam apenas que a política tornou-se o que realmente é: o desafio de unificar diferenças em torno de um objetivo comum.

Se formos mais realistas, concluiremos que a política servirá apenas para oferecer soluções temporárias aos problemas recorrentes. Missionários do tipo Bolsonaro não têm outro caminho, exceto celebrar a atenção do universo que os rejeita. (O Globo – 08/08/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Santa raiva

A tragédia educacional precisa ser vista como a da escravidão.

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

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