‘O mundo começava nos seios de Jandira/Depois surgiram outras peças da criação’.
Esses versos do maior poeta da minha cidade natal, Murilo Mendes, me inspiram para dizer que, de certo modo, as eleições começam na voz de Anitta, e as outras partes da criação.
A cantora brasileira decidiu apoiar Lula, vestiu uma calça vermelha com uma estrela do PT.
Foi um grande impulso para Lula, pelo menos nas redes sociais, onde suas citações cresceram 30%.
Numa sabatina como candidato, Ciro Gomes lamentou que o apoio de Anitta tenha sido dado a outro que não ele. E Bolsonaro ficou furioso, mas aproveitou a popularidade da cantora para atacá-la por sua opção política.
Escolhidos, preteridos ou mesmo rejeitados, os candidatos não podem ignorar Anitta, que tem mais de 60 milhões de seguidores nas redes sociais.
Recentemente, no Rio, Anitta foi chamada a arbitrar a disputa pelo Senado, dividida entre Alessandro Molon, do PSB, e André Ceciliano, do PT. Molon pediu e ganhou o apoio da cantora.
Dificilmente um único eleitor tem tanta influência. Ela participou também da campanha vitoriosa que resultou em mais de 2 milhões de inscrições de jovens, que têm direito a voto, mas não são obrigados a votar.
Algumas vezes refleti sobre esse tema por aqui. Foi quando afirmei que Margaret Thatcher, apesar dos anseios puritanos, deixou uma Inglaterra muito mais liberal e diversa do que encontrou ao chegar ao poder.
Embora um pouco abstrato, um ponto que me parece básico é este: o avanço da economia de mercado dissolve a moral tradicional.
Não há base de comparação entre Thatcher e Bolsonaro. Mas o processo de mudanças na sociedade é ininterrupto, mesmo quando se chega ao poder com um projeto conservador.
Bolsonaro talvez desconfie disso. Nunca foi tão religioso como quer parecer, nunca cultivou uma visão tão rígida de família como propaga.
Como alguns programas sensacionalistas de rádio, ele utiliza e deforma fatos do cotidiano para assustar e se ligar a um público conservador.
Foi assim no princípio do governo com aquela postagem sobre golden shower, uma cena escandalosa que pretendia utilizar como se um homem fazendo pipi fosse algo que se encontrasse em cada esquina.
Ele se agarra desesperadamente à rejeição de Anitta porque sente que isso pode mantê-lo em evidência, apesar de tudo. Adora críticas de Leonardo DiCaprio, pois pode escrever em suas redes sociais: Outra vez, Leo? Como se tivesse uma grande intimidade com o ator, apesar da grande distância que os separa.
Bolsonaro garimpa críticas de atores americanos para usá-las em suas redes sociais. Foi assim com Mark Ruffalo, que disse apenas que Bolsonaro não respeita a democracia. Meses depois uma carta com quase 1 milhão de assinaturas confirma que o medo de Ruffalo é o de muitos brasileiros.
Mesmo quando quer se referir a um político como John Kerry, Bolsonaro confunde o nome com o de Jim Carrey, ator de “Debi & Loide”.
Não estou negando a importância do pensamento verdadeiramente conservador no Brasil. Minha experiência eleitoral mostrou que realmente tem um grande peso numérico.
Desde o Brasil Colônia, no entanto, com as visitas dos Inquisidores, existe uma constante tensão entre o desejo e a norma religiosa, entre liberdade individual e controle da sociedade.
As circunstâncias de 2018 permitiram que fake news como “kit gay”, “mamadeira de piroca” e outras variações ampliassem a influência da extrema direita. Mas o fato de o Brasil ser mais diverso e complexo coloca novos problemas que os extremos não conseguem captar. Não há espaço para uma política religiosa com um enfoque missionário que tente moldar o comportamento das pessoas.
Essa riqueza e variedade de comportamentos significam apenas que a política tornou-se o que realmente é: o desafio de unificar diferenças em torno de um objetivo comum.
Se formos mais realistas, concluiremos que a política servirá apenas para oferecer soluções temporárias aos problemas recorrentes. Missionários do tipo Bolsonaro não têm outro caminho, exceto celebrar a atenção do universo que os rejeita. (O Globo – 08/08/2022)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor