O negacionismo – seja lá o que isso for – é marca registrada desses tempos de governo Bolsonaro, em sua revolta permanente contra os fatos. Nega-se a pandemia com seu cortejo fúnebre de mais de 650 mil vítimas, as virtudes do direito social e do próprio direito como conquista civilizatória em nome de uma liberdade irrestrita dos indivíduos no espaço social em guerra entre si, a questão ambiental cuja degradação contínua ameaça a sobrevivência da espécie, e entre os mais afoitos, até a forma esférica da terra. Trata-se, na verdade, de uma ação combatente contra a razão e a ciência, típica do irracionalismo fascista com seu culto à supremacia da vontade na instituição da vida social. Noutras palavras, recusar realidade empírica a essa coisa tida por sociedade, pois “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, alardeia o voluntarismo político.
Sob essa sinistra orientação, nega-se a lisura do processo eleitoral realizado por urnas eletrônicas, prática usual bem-sucedida entre nós, coincidente com várias pesquisas eleitorais que apontam a vitória oposicionista por larga margem de votos, e se urde no preparo do que em linguagem popular significa melar a apuração eleitoral, possivelmente com o concurso de ações criminosas por parte de esbirros milicianos. O golpe está sobre a mesa, disponível para o uso.
O cometimento desse ultraje que se premedita é de gravidade inaudita, e, caso ocorra, poderá suscitar um amplo movimento de indignação, nacional e extramuros. Na eventualidade, é preciso atentar para os cálculos dos estrategistas do golpe que contam com um tumulto superveniente para desferir o movimento desde sempre desejado: a restauração, remodelada, aqui e ali, do regime do AI-5.
Faz tempo que os democratas brasileiros aprenderam serem as eleições sua forma superior de luta e desse terreno não se afastarão a qualquer pretexto. Nesse sentido, as provocações de que são alvo devem ser ignoradas, levantando contra elas as instituições que afiançam a defesa do Estado Democrático de Direito, ao tempo em que ampliam suas alianças nos limites do possível, admitindo, sem restrições, mesmo antigos aderentes do bolsonarismo e que dele se descolam.
Se porventura um ato de força vier a frustrar a conclusão do processo eleitoral por uma intervenção ensandecida do voluntarismo político, ele não terá como encontrar sustentação no mundo das coisas reais. Estamos bem distantes das circunstâncias presentes à época do golpe de 1964, não somos peças importantes num cenário de guerra fria como dantes, aliás é diversa a clivagem entre as superpotências desde a emergência da China. Além disso, a floresta amazônica brasileira não ocupava papel de centralidade na agenda mundial do meio ambiente atual, e sobretudo ainda não tinham aflorado com a força de hoje movimentos sociais como os de gênero, dos negros e dos indígenas, trazendo uma demografia política mais plural e democrática, que já se reflete nas pesquisas eleitorais.
Ainda há tempo a fim de arregimentar um vigoroso sistema de defesa que impeça a efetivação da trama do golpe, para que importa a mobilização da opinião pública internacional e das organizações mundiais afetas à defesa dos ideais civilizatórios, a que não deve faltar manifestações populares massivas. Em Roma, os gansos do Capitólio grasnavam em advertência a perigos que ameaçassem a República.
O desacato infligido a nossa democracia por esse projeto mal-ajambrado de um governo tirânico de Bolsonaro perante embaixadores de países amigos finalmente desatou a voz dos que ainda permaneciam em silêncio. A salvação da nossa República está em traduzir o que ainda é um alarido num clamor público cuja máxima potência sirva de advertência a seus inimigos para que recuem dos seus projetos temerários. (Horizontes Democráticos – 20/07/2022 https://horizontesdemocraticos.com.br/os-gansos-do-capitolio-e-nos/)
Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio