A maioria dos leitores não tinha nascido ainda, e eu já cobria crimes políticos no Brasil. Um advogado de Minas, Danilo Sebe, me enviou o recorte de uma longa reportagem sobre o assassinato do deputado Nacip Raydan, em Santa Maria do Suaçuí. Isso foi em 1962.
Minhas retinas ainda não estavam fatigadas. Depois disso, acompanhei a morte do estudante Edson Luís, em 1968, viajei a Xapuri, no Acre, para cobrir o enterro de Chico Mendes, passei a noite em Anapu, no Pará, durante o velório de Dorothy Stang. Isso para mencionar apenas os casos em que há referências na história. Minhas reportagens sobre assassinato de vereadores na Baixada Fluminense caíram no limbo com suas vítimas anônimas.
Apesar de toda a trajetória, não considero o assassinato do petista Marcelo Arruda apenas mais um caso. Neste momento da História do Brasil, há um fator decisivo: a violência é estimulada de cima para baixo.
Estamos colhendo os frutos amargos de uma política de extrema direita que não só glorifica o uso de armas, mas reduz ao máximo seu controle.
Não se pode reduzir a violência apenas ao uso de armas. Ela é ostensiva na linguagem (“vamos fuzilar a petralhada”), presente no tratamento às jovens repórteres, grotesca nos gestos que imitam a agonia de quem sente falta de ar por causa da Covid-19.
Já escrevi um texto sobre o fascismo tabajara, baseado no pequeno livro de Umberto Eco. Nele, mencionei não apenas o culto às armas, mas também aquele à masculinidade.
Bolsonaro considerava um absurdo que as pessoas se protegessem da pandemia: uma frescura. Essa tendência de associar mulheres e gays à falta de coragem é fruto da ignorância e da falta de experiência real. Os gays que vi na cadeia encaravam com altivez a mais dura das repressões; algumas mulheres foram muito mais corajosas que os homens durante a tortura.
Isso para falar de experiências extremas. O cotidiano das mulheres pobres que sozinhas lutam para alimentar suas famílias é um exemplo mais eloquente.
O culto à masculinidade, às armas e à violência não é uma invenção da extrema direita: ela apenas o leva ao paroxismo. Na linguagem filtrada da política, o tema aparece como um simples dado de pesquisa eleitoral: em quem votam as mulheres? No entanto o que está em jogo também é toda uma estrutura patriarcal que resiste e precisa ser transformada, como mostram os avanços populares no Chile e na Colômbia.
Nunca imaginei que fosse possível uma história como a do anestesista que violenta a mulher no momento do parto. Isso transcende à imaginação do repórter mais calejado.
Quando vamos um pouco mais longe, constatamos que há outros casos de estupro em hospitais do Rio, e surgem também os depoimentos de mulheres com um visão bastante dolorosa de como são tratadas pela obstetrícia.
De um modo geral, os analistas políticos encaram a ascensão da extrema direita ao poder como resultado de uma crise do capitalismo diante de uma inquieta classe operária. Ainda teremos algum tempo para entender tudo, mas o impulso de preservação do patriarcado, com suas múltiplas manifestações de violência, parece ter sido decisivo na trajetória do governo Bolsonaro e em sua própria visão estratégica. Ele jamais condenou o presidente da Caixa pela prática de assédio sexual. Pelo contrário, afirmou que haveria continuidade na gestão do banco.
Numa conclusão provisória, considero que as mudanças no Brasil não só devem levar em conta o fator que nos oprime, mas sobretudo a grande aliança que pode mover a transformação. Certamente, não é a sopa de letrinhas dos partidos, mas o contingente de mulheres brasileiras, negros, gays e homens de boa vontade, aqueles que também compreendem que serão libertados de seus preconceitos machistas. (O Globo – 18/07/2022)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor