Andrea Jubé: Gabo e os ‘vícios’ da democracia na América

Ao discursar em um congresso que reuniu artistas e intelectuais latino-americanos, como o então ministro da Cultura brasileiro, Francisco Weffort, o vencedor do prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez contou uma anedota sobre a democracia colombiana.

Segundo Gabo, como era conhecido o autor colombiano, bastava que ocorressem as eleições dentro do cronograma eleitoral para que a democracia na Colômbia se legitimasse. Isso porque o “rito” deveria se sobrepor aos vícios que maculavam o sistema, como clientelismo, corrupção, fraude, compra de votos – uma realidade muito conhecida do eleitor brasileiro.

No discurso proferido em março de 1995, durante evento realizado em Isla Contadora, no Panamá, Gabo relembrou Jaime Bateman, o comandante do movimento M-19, deflagrado nos anos 70, do qual fez parte o presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro. Curiosamente, o codinome de Petro era “Aureliano”, personagem do romance “Cem anos de solidão”, de García Márquez.

“Um senador não se elege com 60 mil votos, mas sim com 60 mil pesos”, dizia Bateman, citado pelo escritor. Uma das bandeiras da guerrilha, extinta em 1990, era o combate à corrupção – chaga da política colombiana e da brasileira.

Foi o mote para García Márquez lembrar que em Cartagena, certa vez, uma vendedora de frutas lhe cobrou no meio da rua: “Me deves seis mil pesos”. Gabo compreendeu, depois, que ela estava cobrando o voto. Ela votou por engano em um candidato com um nome parecido com o dele. Gabo não se fez de rogado e quitou a dívida alheia.

O resultado das eleições na Colômbia era aguardado com ansiedade pelo comando das duas campanhas que lideram as pesquisas sobre a sucessão presidencial no Brasil. A vitória da chapa Gustavo Petro-Francia Márquez entusiasmou aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e preocupou o time do presidente Jair Bolsonaro, ao confirmar que os ventos vêm soprando na direção da esquerda no continente latino-americano.

A lista de políticos de esquerda vitoriosos nas urnas a partir de 2020 contempla Luís Arce, na Bolívia, Pedro Castillo, no Peru, Xiomara Castro, em Honduras, e, mais recentemente, Gabriel Boric, no Chile. Em 2018, Manuel López Obrador elegeu-se presidente do México num movimento contrário à onda direitista e no mesmo ano em que Jair Bolsonaro surpreendeu ao se consagrar nas urnas no Brasil.

Uma fonte da campanha lulista observou à coluna que a vitória de Petro ganha mais relevância porque o desafio da esquerda na Colômbia era maior. Foi uma vitória inédita, equiparável ao feito de Lula em 2002, quando o petista venceu após amargar três derrotas consecutivas. Petro havia perdido duas eleições, até se consagrar neste domingo.

Há uma avaliação na campanha lulista de que o caminho para eventual triunfo no Brasil não será fácil, mas não será um desafio como aquele enfrentado por Petro, porque o legado de Lula seriam oito anos de um governo “de centro”, que compôs com todos os setores da sociedade civil, dos movimentos sociais, até empresários e mercado financeiro.

Esse é o pano de fundo da resposta pragmática de Lula quando foi questionado, em maio, pela revista americana “Time” sobre a proposta de Gustavo Petro de criar um bloco antipetróleo entre países da América Latina, no intuito de não explorar novas jazidas para reduzir a produção de energia poluente.

“No caso do Brasil é irreal, no caso do mundo é irreal”, rechaçou Lula. “Você ainda precisa do petróleo por um tempo… Enquanto você não tiver energia alternativa, vai utilizar a energia que você tem. Isso vale para o Brasil e vale para o mundo inteiro”.

Ainda à “Time”, Lula disse que seria necessário estabelecer é um plano de longo prazo para diminuir [o consumo de petróleo] na medida em que se criariam alternativas. “Não dá para imaginar que os Estados Unidos vão parar de utilizar petróleo do dia para a noite, ou qualquer país”, criticou.

A futura gestão de Gustavo Petro e da vice-presidente eleita Francia Márquez deve elevar a pressão sobre o governo brasileiro nas pautas energética e ambiental. A proposta sobre a suspensão da exploração de petróleo coincide com um momento de revezes para a Petrobras, na pior crise da empresa depois do escândalo da Lava-Jato.

O ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, também vê com perplexidade a proposta de Petro para uma eventual matriz enérgica do continente. “Parar de explorar petróleo? Isso é que nos traz muita preocupação do que vai se tornar a América Latina”, criticou o principal auxiliar de Bolsonaro.

“O Brasil hoje é o último país para evitar esse caos que está acontecendo na América Latina como um todo”, disse Nogueira, em alusão ao pleito de outubro. “Veja o caso da Argentina, do Chile, do Peru. Um governante que diz que vai parar de explorar o petróleo, veja o nível de complexidade de decisão que temos para tomar no Brasil”, reagiu.

“Gostaria muito que o Brasil e o mundo não precisasse de petróleo, de combustível fóssil que causa poluição, mas não temos alternativa. Pelo menos a curto e médio prazo, é impossível”, reforçou.

Nogueira ressalvou que o mundo ainda vai passar por uma transformação e vai pagar o custo da energia verde. “O Brasil vai se beneficiar disso”, acrescentou.

A prioridade sobre a pauta ambiental proposta pela dupla Petro e Márquez também encontra o governo em meio ao escândalo internacional do assassinato do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.

A mineração em área ambiental é um tema sensível a Francia Márquez, agraciada com o Prêmio Goldman em 2018, espécie de Prêmio Nobel do Meio Ambiente, por sua luta na comunidade de La Toma “para impedir a mineração ilegal de ouro em suas terras ancestrais”. O país ainda ganha relevância como um dos três do continente (ao lado de Chile e México) a integrar a OCDE, clube dos mais ricos aonde o Brasil pretende ingressar. (Valor Econômico – 21/06/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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