Míriam Leitão: Inflação presente e o risco futuro

O problema não é apenas a inflação de agora, mas o processo inflacionário à frente. O índice de abril foi horroroso, o pior para o mês desde 1996 e o acumulado chegou a 12,13%. O governo tem tomado decisões que podem manter a inflação alta por muito mais tempo que este mandato. De imediato, haverá oscilação pra baixo. Maio será um mês de refresco nessa fornalha que tem atingido os índices. Tanto o IPCA-15 quanto o IPCA vão trazer números baixos. Mas a questão mais preocupante é que o país pode estar contratando agora a elevação de preços de amanhã.

Quem alertou para isso foi Ana Paula Vescovi, economista-chefe do Santander Brasil. Ela fez parte da equipe que, no governo Michel Temer, derrubou a inflação de dois dígitos para o centro da meta. Difícil repetir o feito. O mundo não está ajudando e há muitas escolhas erradas sendo feitas neste momento, como o aumento forte das despesas.

— Este ano o gasto primário está aumentando 5%, já descontada a inflação. Uma despesa de 5% real maior do que no ano passado. Isso não vai ceder de uma hora para outra. Todos os componentes presentes na inflação atual estão elevando a inércia e esse quadro fiscal é um desses componentes — disse Ana Paula em uma entrevista que me concedeu na Globonews.

Há fatores que são transitórios e são eles que farão um mês de maio muito melhor do que o de abril. Luis Otávio Leal, economista-chefe do Banco Alfa, me disse que os preços dos produtos in natura devem cair.

— Uma análise de 22 anos mostra que só em dois anos esses preços não tiveram queda em maio. São hortaliças, verduras, tubérculos, raízes, legumes, frutas e ovos. Esse grupo no mês de abril subiu 2,49% e fechou o primeiro quadrimestre em 27,67% de alta — explicou.

Em maio deve ceder. Haverá ainda o impacto da eliminação da tarifa extra de energia, que já ajudou um pouco em abril, mas afetará mais o índice de maio. Então, o mês que estamos vivendo terá bons números.

É o que acredita também o economista Luiz Roberto Cunha, da PUC do Rio. Ele projeta 0,35%. Não será tão baixo nos meses seguintes. Os economistas, em geral, projetam número abaixo de 10% para o fechamento do ano, mas o índice só cairá abaixo de 10% em setembro, ou seja, teremos um ano de inflação de dois dígitos.

Os próprios economistas brincam com o fato de que suas previsões de pico da inflação têm sido derrubadas pelos fatos. “É o pico móvel”, diz Leal. Mas quedas eventuais aliviam e não resolvem o problema. E não adianta coisa alguma esse espetaculoso corte de cabeças na área energética executado por Bolsonaro. Ele derrubou ontem o ministro das Minas e Energia, depois de duas demissões na presidência da Petrobras. Faz isso como truque, para usar no palanque. Da mesma forma é bravata o novo ministro Adolfo Sachsida falar em privatização da Petrobras, a menos de cinco meses das eleições, depois de um mandato que nada realizou nessa área.

O que tem acontecido de real é que o governo alimenta a inflação futura com aumento de gastos, concessões a lobbies e crise institucional criada pelo presidente. Têm sido tomadas decisões estranhas e inflacionárias. No setor elétrico, o que as fontes comentam o tempo todo é a maluquice que ocorre no setor de gás.

Para beneficiar um empresário o governo está tomando decisões que vão custar caro ao Brasil por vários anos. O jabuti que o Congresso prepara para a construção dos gasodutos é uma história cercada de erros desde o início. A partir dos anos 90, o empresário Carlos Suárez conquistou o direito de ser distribuidor exclusivo de gás em vários estados do país, em parceria com a União e governos estaduais. Nos estados onde não há gás, as suas concessões e empresas não têm valor, porque simplesmente não operam. Por isso, ele tenta viabilizar esses projetos. Se os gasodutos forem construídos, suas empresas irão se valorizar.

No projeto da Eletrobras foram enfiados os jabutis prevendo a construção de termelétricas longe dos centros produtores. Agora o proposta é garantir a construção do gasoduto. O custo pode chegar a R$ 100 bilhões. Quem pagará será o consumidor ou o contribuinte. E depois certamente virá o jabuti das linhas de transmissões. Em resumo, este governo não satisfeito em alimentar a inflação de hoje, planta a inflação futura. E o passado nos ensina a não conviver com esse risco. (Com Alvaro Gribel, de São Paulo/O Globo – 12/05/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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