Luiz Carlos Azedo: Silêncio de Fux desanuvia a crise

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, reuniu-se ontem com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e com o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira. Os encontros tiveram o claro propósito de desanuviar o clima de tensão existente entre a Corte e os demais Poderes, em razão do caso do deputado Daniel Silveira, cuja condenação à prisão foi perdoada (graça) pelo presidente Jair Bolsonaro e, também, das declarações do ministro Luís Barroso sobre o posicionamento das Forças Armadas em relação à segurança das urnas eletrônicas.

O discreto posicionamento de Fux durante o recrudescimento dos ataques de Bolsonaro ao Supremo foi muito questionado pelos próprios pares, nos bastidores da Corte, mas ajudou a distensionar o ambiente político, ao menos por enquanto. Após o encontro com Pacheco, o STF distribuiu nota na qual afirma que ambos estão comprometidos com “a harmonia entre os Poderes, com o devido respeito às regras constitucionais”. Ao sair do encontro, Pacheco falou:

“O que nós não podemos é permitir que o acirramento eleitoral — que é natural do processo eleitoral e das eleições — possa descambar para aquilo que eu reputei como anomalias graves e se permitir falar sobre intervenção militar, sobre atos institucionais, sobre frustração de eleições, sobre fechamento do Supremo Tribunal Federal. Essas são anomalias graves que precisam ser contidas, rebatidas com a mesma proporção a cada instante porque todos nós, todas as instituições, têm obrigações com a democracia, com o estado de direito, com a Constituição”, disse o presidente do Senado, conciliador.

A conversa do ministro da Defesa com o presidente do Supremo, porém, foi antecedida por uma ostensiva demonstração de alinhamento do Exército com o presidente Bolsonaro, que participou da reunião com o Alto Comando da Força pela manhã, ao lado do general Paulo Sérgio. Depois, ambos foram para o Ministério da Defesa. Os dois eventos não constavam da agenda oficial de Bolsonaro, que explora o esgarçamento das relações da cúpula militar com o Supremo, agravadas pelas declarações de Barroso, na semana passada.

“Durante o encontro, o ministro da Defesa afirmou que as Forças Armadas estão comprometidas com a democracia brasileira e que os militares atuarão, no âmbito de suas competências, para que o processo eleitoral transcorra normalmente e sem incidentes”, registrou Fux, por meio de nota distribuída pelo Supremo. O general Paulo Sérgio saiu do encontro sem dar declarações.

Bolsonaro coloca em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e propõe uma contagem paralela dos votos pelos militares, o que é um absurdo institucional. Essa questão é tratada por Bolsonaro como se fosse um posicionamento estratégico, para não reconhecer o resultado das urnas, caso perca as eleições. O favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas alimenta a insatisfação dos militares e de parte da opinião pública com a anulação de sua condenação pelo Supremo, com base no princípio do juiz natural.

Caso Silveira

A tensão política foi momentaneamente desanuviada, mas o caso Daniel Silveira é uma espécie de bomba relógio. O Supremo ainda não concluiu o julgamento e há muitas dúvidas no ar, ainda. Os advogados do parlamentar querem que o inquérito seja simplesmente arquivado, em razão da graça concedida por Bolsonaro, com o argumento de perda de objeto da ação. Dificilmente a maioria dos ministros da Corte acolherá esse pedido, até porque o parlamentar mantém sua postura desafiadora, participando de atos contra o Supremo. Isso pareceria uma rendição.

A tendência é a Corte aceitar o perdão de Bolsonaro, mas não livrar o parlamentar da ilegibilidade, com base na lei da Ficha Limpa, porque a graça não anula a condenação, apenas o livra do cumprimento da pena de prisão. Sem os direitos políticos, a candidatura de Silveira ao Senado, pelo Rio de Janeiro, estaria liquidada. O parlamentar se tornaria um zumbi nos corredores da Câmara, contando os dias que faltam para concluir seu atual mandato.

Entretanto, enquanto isso não acontece, Daniel Silveira circula pelo plenário como uma estrela política ascendente no campo bolsonarista, a encarnar o descontentamento dos seus pares com o Supremo, no lusco fusco da posição ambígua do presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL). O parlamentar se tornou um personagem mais proeminente do que qualquer um dos líderes da situação ou da oposição.

A volta às sessões presidenciais da Câmara, por outro lado, revelou um parlamento dócil e omisso diante de assuntos relevantes, como o desaparecimento de uma aldeia inteira de ianomâmis, atacados por garimpeiros, denunciado ontem da tribuna pela deputada Perpétua Almeida (PcdoB-AC) e outros parlamentares. Após denúncias de estupro e morte de uma menina de 12 anos e do desaparecimento de uma criança de 3 anos, a comunidade Aracaçá, no Norte de Roraima, sumiu da aldeia e suas casas foram queimadas. Em outras circunstâncias, o assunto seria uma comoção na Câmara, mas não é o que acontece. Arthur Lira trata o caso como uma trivialidade. (Correio Braziliense – 04/05/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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