Desculpe se escrevo sobre algo muito geral como a sociedade em que vivemos, problemas de atualidade ou tudo isso que está aí.
Através de seu caminho, o texto se torna mais específico. Quando estou no Rio, trabalho e estudo um pouco até as oito e meia da noite. Nesse momento, sinto-me livre e vou ler algo e ver uma série na TV.
Ultimamente estava lendo o livro “68 contos de Raymond Carver”. Terminado um conto, ligava a TV.
Os personagens de Carver são pessoas simples. Ele se inspirou no grande escritor russo Tchekhov. São garçonetes, limpadores de chaminés, mecânicos, às vezes um professor universitário. Eles têm problemas, alguns são alcoólatras em recuperação. Mas seus problemas são pequenas neuroses, essa loucura cotidiana que está em nós e ao nosso redor.
Quando começo a ver uma série, já no final da jornada, costumo levar um susto. Tenho muita simpatia por roteiristas, são nossos irmãos. Mas às vezes inventam coisas estapafúrdias para nos arrancar do torpor cotidiano. Saio da literatura para as séries de TV e sinto como se estivesse saindo do território da neurose para o da psicopatia.
Isso não é bom antes de dormir, traz pesadelos. Comecei a ver uma série que abria com um suicídio de um velho senhor. Ele se jogou do telhado. Pensei, que bom, o roteirista já nos deu um pequeno choque e agora vai se acalmar um pouco. Ilusão. Cinco minutos depois, a mãe de talentosa concertista suicida-se na frente da filha no dia de sua estreia. E se suicida mesmo, com uma grande faca cortando o pescoço.
Creio que essa tática de sacudir o espectador talvez não vá muito longe. São tantas as esquisitices que o escritor inglês John Gray previu que, em breve, uma certa normalidade entrará de novo na moda.
Escrevo numa semana em que a Netflix perdeu 200 mil assinantes. Mas não creio que minha opinião tenha importância. Os fatores são outros, e minha crítica talvez espere alguns anos para ser levada em conta.
A situação é mais complicada ainda na internet, onde os grupos se atacam incessantemente. O WhatsApp anunciou que inaugurará uma ferramenta que permite o compartilhamento em massa dos posts.
Com medo das eleições, o TSE pediu um tempo para que vigorasse no Brasil. Procuradores de São Paulo perguntam ao WhatsApp se já ponderou o impacto da nova medida.
Aposto que não. A internet caminhava bem nos seus primórdios, com troca de notícias domésticas e receitas. Com a introdução do botão like e também do compartilhar, as coisas começaram a mudar.
O panorama hoje é assustador. Ninguém se entende mais sobre a Constituição ou a História de um país, pois há uma versão para cada gosto. A emoção e a tendência a se indignar tomaram conta da rede.
Há uma frase de Umberto Eco muito difundida, segundo a qual, com a internet, os idiotas deixaram de discutir no botequim e migraram para as redes sociais.
Tenho dúvidas se isso é verdadeiro.
Milhares de pessoas vieram às redes fazendo exatamente o que os intelectuais fazem: dando opinião, tentando convencer.
Muitos anos antes do surgimento da internet, o filósofo romeno Cioran já abordava esse fenômeno de forma radical:
— A loucura de pregar está tão enraizada em nós — escreve ele — que emerge das profundidades desconhecidas ao instinto de conservação. Cada um espera seu momento para propor algo: não importa o quê. Dos esfarrapados aos esnobes, todos distribuem receitas de felicidade, todos querem dirigir os passos de todos. Têm uma voz e isso basta. Pagamos caro por não ser surdos e mudos.
Mark Zuckerberg e todos os outros donos de plafatormas digitais são aprendizes de feiticeiro. Eles lançam uma ferramenta primeiro para ver o que acontece depois. Os intelectuais agora se assustam com a multiplicação dos profetas que a internet acordou em cada ser humano.
Mas é isto o progresso: não só ilusório, como também interminável. (O Globo – 25/04/2022)
Fernando Gabeira, jornalista