Luiz Carlos Azedo: Guerra da Ucrânia torna China ainda mais forte

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O diplomata e estrategista político Henry Kissinger talvez seja o político do Ocidente que melhor conhece a China, onde esteve cerca de 50 vezes. Seu livro Sobre a China é um best-seller até hoje. A proeza dele como diplomata foi conceber e executar a reaproximação entre os Estados Unidos e a China comunista, construindo uma aliança que seria decisiva para o colapso da antiga União Soviética. Seus críticos, porém, questionam a forma subalterna como trata a questão da democracia e dos direitos humanos na China.

A China demorou para aceitar que não era o centro do mundo e que precisaria se integrar a um sistema internacional liderado pelas potências ocidentais. Isso ocorreu na marra, após ser derrotada militarmente pelo Império Britânico. Sem os mesmos recursos, no entanto, os chineses optaram por convidar outros países europeus a estabelecerem postos comerciais no seu território, para provocar e depois manipular a rivalidade entre eles.

O princípio “derrotar os bárbaros próximos com o auxílio dos bárbaros distantes” foi adotado com êxito pela China. Seu paradigma de diplomacia pode ser comparado aos fundamentos do Wei qi, uma espécie de jogo de gamão, no qual os fatores políticos e psicológicos subordinam os princípios puramente militares no “cerco estratégico”.

Kissinger explorou com competência as divergências existentes, desde a morte de Stalin, entre os líderes soviéticos e a liderança chinesa. Mao Tsé Tung recebeu a visita do presidente Richard Nixon. Estados Unidos e China passaram a ser aliados contra a antiga União Soviética. A aliança americana com o regime nacionalista em Taiwan passou à condição subalterna, e o trauma da Guerra da Coreia foi relevado.

Mao, Zhou Enlai e Deng Xiaoping foram interlocutores privilegiados de Kissinger, que também se relacionou com Zhao Zyiang, Jiang Zemin e Qian Quichen, a geração nova de reformadores. Por uma ordem internacional mais estável, num mundo repleto de armas nucleares, a China foi aceita no Conselho de Segurança da ONU.

A guerra de seis semanas da China contra o Vietnã, em 1979, foi um subproduto dessa mudança. Pequim conteve o desejo vietnamita de montar um bloco com Camboja e Laos. Após o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, em que jovens estudantes pediam abertura política, Xiaoping iniciou um processo de reformas capitalistas que, no curto espaço de 30 anos, elevaram a China ao status de segunda potência econômica do planeta.

No mundo globalizado, o eixo do comércio deslocou-se do Atlântico para o Pacífico. O governo chinês se tornou um dos fiadores da ordem mundial como uma grande potência pacífica. Entretanto, eleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, amigo de Vladimir Putin, resolveu escalar uma guerra comercial com a China e se aproximar da Federação Russa.

Guerra fria

Joe Biden assume a Presidência com uma equipe diplomática disposta a restabelecer a hegemonia absoluta dos Estados Unidos na política mundial, a partir da aliança com o Canadá e o Reino Unido, escalando o conflito da Otan com a Federação Russa em torno da Ucrânia. No lugar do mundo multipolar que se esboçava a partir da liderança da Alemanha e da França na União Europeia, ressurge uma guerra fria, que se torna guerra quente com a invasão da Ucrânia e, com a ajuda da agressividade de Putin, arrasta toda a União Europeia para o confronto. O eixo da política internacional deixa de ser o comércio e a cooperação e passa a ser a defesa da democracia e dos valores liberais como narrativa para nova corrida armamentista.

Com a guerra da Ucrânia, a Rússia passa a depender cada vez mais da China. Porém, enquanto Putin joga xadrez e busca a vitória total em termos geopolíticos, Xi Jinping, o líder chinês, segue os princípios do Wei qi e mantém sua estratégia focada na integração às cadeias de produção e de comércio mundial, nas quais os Estados Unidos continuam sendo a força mais importante — estão aí as sanções econômicas contra a Rússia —, mas em declínio.

A China leva vantagem com a guerra da Ucrânia, embora a narrativa do Ocidente quanto à democracia se aplique também ao regime comunista chinês. Com a exclusão da Rússia do sistema Swift, ou seja, do sistema de mensagens interbancárias, por exemplo, os bancos russos se socorreram no sistema de pagamentos interbancários transfronteiriços (Cips), criado pela China em 2015.

Os chineses não apoiam as sanções econômicas e se abstiveram de condenar a agressão russa à Ucrânia na ONU.

O sistema Cips é usado para liquidar créditos e trocas internacionais de yuans na chamada Rota da Seda. Permite que os bancos globais realizem transações internacionais em yuan. Somente no ano passado, o sistema processou cerca de 80 trilhões de yuans (US$ 12,68 trilhões), um aumento de 75% em relação ao ano anterior. Em janeiro, 1.280 instituições financeiras de 103 países e regiões fizeram login no sistema chinês. O yuan pode sair dessa crise como uma moeda internacional. (Correio Braziliense – 04/03/2022)

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