Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro volta à carga contra as urnas eletrônicas

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O presidente Jair Bolsonaro voltou a levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas e disse que até mesmo o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, não acredita no sistema eleitoral brasileiro. Em reposta, ontem, o TSE divulgou as informações prestadas às Forças Armadas sobre o processo eletrônico de votação.

Na terça-feira, Fachin, que assumirá a presidência da Corte na próxima semana, afirmara que a “Justiça eleitoral já pode estar sob ataque de hackers”. Segundo o magistrado, que escolheu o slogan “paz e segurança nas eleições” para o pleito deste ano, os ciberataques aumentaram nos últimos meses.

As ameaças partem não apenas de atividades criminosas, mas de países como Rússia e Macedônia. Segundo Fachin, relatórios internacionais indicam que 58% dos ataques têm como origem a Rússia. Coincidentemente, desde a semana passada, a polêmica sobre a segurança das urnas voltou às redes sociais. Segundo Bolsonaro, o Ministério da Defesa havia apontado falhas no sistema operacional. Na verdade, o que houve foi um pedido de informações sobre o funcionamento do sistema e seu sistema de segurança, devidamente respondido pelo TSE. Ataques de hackers são constantes nas eleições, mas, até hoje, não tiveram sucesso.

Diante das novas declarações de Bolsonaro, o TSE decidiu divulgar as perguntas dos militares e as respostas que deu. Uma delas foi sobre a substituição de cartões de memória por entradas USB, no novo modelo de urna eletrônica. O TSE respondeu que somente os dispositivos conhecidos que já integram a urna são aceitos nas portas USB: “Caso seja identificado um dispositivo não conhecido em qualquer porta, o sistema operacional da urna desliga a alimentação da porta USB. Dispositivos conhecidos conectados em portas diferentes da esperada resultam no bloqueio da urna pelo sistema operacional. Todo dado sensível que trafega pelo barramento USB é protegido por criptografia”.

O TSE também esclareceu que a fabricação de urnas eletrônicas é auditada diretamente na linha de produção, de acordo com as exigências técnicas e especificações estabelecidas na licitação dos serviços. “As urnas eletrônicas estarão submetidas a todos os eventos de fiscalização e auditoria. Os Testes Públicos de Segurança têm como objeto o último modelo de urna que teve seu sistema totalmente implementado e em produção”.

Descrédito

Mais uma vez, Bolsonaro tenta utilizar as Forças Armadas para desacreditar o processo eleitoral, o que faz parte de uma estratégia ensaiada em outros momentos, especialmente às vésperas do 7 de setembro do ano passado, com propósitos claramente golpistas. Essa estratégia é alimentada também pelo ministro da Defesa, Braga Neto, que incentiva os questionamentos e tem a ambição de ser vice-presidente da República.

A retomada da polêmica, de certa forma, contribuiu para que o general Luiz Fernando Azevedo, que antecedeu Braga Neto, tenha decidido não assumir a diretoria-geral do TSE, cargo para o qual havia sido convidado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que deixa o comando da Corte. O ex-ministro da Defesa alegou motivos de família.

A logística de realização das eleições, tradicionalmente, conta com o apoio das Forças Armadas, não só para garantir a realização do pleito em regiões remotas ou de alta criminalidade, como também por razões logísticas — ou seja, o transporte e a segurança das urnas eletrônicas.

O recrudescimento da narrativa de Bolsonaro sobre a falta de segurança na apuração dos votos coincide com a viagem a Moscou, a convite do presidente russo Vladimir Putin. Hackers russos são acusados de interferir nas eleições norte-americanas em favor de Donald Trump, por meio de ataques de hackers e fakes news. Na terça-feira, o TSE fechou um acordo com as plataformas WhatsApp, Twitter, TikTok, Facebook, Google, Instagram, YouTube e Kwai para criar mecanismos para conter a disseminação de mentiras. No WhatsApp, deve ser implementado um canal para informar eleitores.

Entretanto, a rede social russa Telegram não tem escritório no Brasil e não participa do acordo. “Estamos todos preocupados e empenhados em preservar um ambiente de debate livre”, disse Barroso, ao anunciar o acordo, um de seus legados como presidente do TSE.

Como o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho de Bolsonaro, acompanhou o pai na comitiva em Moscou e manteve uma agenda paralela, como se estivesse fazendo turismo, há suspeitas de que estaria fazendo entendimentos para a contratação de hackers russos para a campanha. Eles são especialistas em fake news. Carlos é o responsável pela atuação do pai nas redes sociais, nas quais o presidente tem cerca de 45 milhões de seguidores. (Correio Braziliense – 17/02/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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