Ricardo Mendonça: WhatsApp, Telegram, ‘fake news’ e eleições

Principal concorrente do WhatsApp, o Telegram estava instalado em 19% dos smartphones brasileiros em 2019. Um ano depois, segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/ Opinion Box, pulou para 35%. Em agosto do ano passado, atingiu 53%. Mantido o ritmo, é possível projetar que o emergente aplicativo estará instalado em cerca de 70% dos telefones de eleitores brasileiros em agosto deste ano, no auge da campanha eleitoral.

Pressionado em face da acusação de servir de base para propagação de “fake news” em todo o mundo, e em particular nas eleições brasileiras de 2018 – ações que beneficiaram sobretudo Jair Bolsonaro -, o WhatsApp passou a limitar em cinco o número máximo de encaminhamentos de uma mensagem. Em 2020, limitou ainda mais, permitindo apenas um encaminhamento.

Uma pesquisa acadêmica publicada por Fabrício Benevenuto (UFMG) e outros autores com base em dados de Brasil, Índia e Indonésia mostrou que esses esforços geraram atrasos na disseminação de informações, mas não se mostraram eficazes em bloquear a propagação de campanhas de desinformação.

Alguém pode alegar que as ações do WhatsApp foram tímidas ou, numa abordagem mais severa, dissimuladas. No Telegram, porém, não há nem a hipótese do disfarce. Inexiste registro de qualquer esboço de preocupação com “fake news”.

Outra característica do WhatsApp é a limitação em 256 no número de participantes em seus grupos. Muitos avaliam que é uma medida passível de ser contornada por militantes motivados a espalhar mentiras. A limitação, de qualquer forma, dificulta esse tipo de delinquência. No mínimo, dá mais trabalho ao delinquente.

O Telegram jamais cogitou fazer algo parecido. Ali, grupos de qualquer natureza podem ter milhares de inscritos.

Do ponto de vista de quem quer desinformar, o Telegram tinha uma desvantagem. As mensagens eram rastreáveis. Um mecanismo permitia identificar a conta responsável pelo disparo original de um post injurioso, calunioso ou difamatório. Para a alegria das milícias digitais, isso deixou de existir. O Telegram passou a oferecer a opção de anonimato ao autor de materiais postados.

De origem russa, o Telegram é baseado nos Emirados Árabes. A ausência de mecanismos de moderação de conteúdo é uma de suas bandeiras. Outra marca é a falta de cooperação com instituições governamentais.

São dois aspectos que vêm sendo cumpridos à risca no Brasil. Inerte em 2018, quando a máquina da “fake news” correu solta, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem se mostrado preocupado com o tema e passou a estabelecer parcerias com as principais plataformas. Tem canal com a Meta (WhatsApp, Facebook e Instagram), Google (YouTube) e Twitter, entre outros. Mas jamais conseguiu obter sequer um “oi” de alguém do Telegram.

Chega a ser humilhante. O Estado brasileiro não sabe como fazer chegar um ofício à empresa que já está presente nos smartphones de mais da metade do eleitorado do país.

Em dezembro, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, enviou uma carta ao diretor executivo do Telegram, Pavel Durov, pedindo uma reunião para tratar de possíveis formas de cooperação no combate à propagação de “fake news”.

Fontes do TSE mostraram à repórter Isadora Peron, do Valor, que o pedido foi enviado a dois e-mails, mas nunca houve resposta. A tentativa de mandar o documento físico fracassou, relataram, pois ninguém foi localizado no que parece ser o endereço da empresa nos Emirados Árabes.

Ao longo de 2021, tentou-se aprovar no Congresso um projeto de lei que atacaria os dois principais problemas potenciais dos aplicativos de mensagens. O texto estabelecia obrigatoriedade de adoção de mecanismos e rastreabilidade e obrigatoriedade de designação de um representante legal de cada plataforma interessada em atuar no país.

Se o Telegram insistisse em não ter representação no Brasil, o serviço seria banido, o que poderia ser interessante para seus concorrentes. Como não apareceu nenhum lobista do Telegram em Brasília para bloquear a iniciativa, esse trecho do projeto seria aprovado com facilidade.

Ocorre que os concorrentes estavam mais interessados em impedir a rastreabilidade. Em aliança com bolsonaristas e ativistas alarmados com riscos ao direito de privacidade, conseguiram travar todo o projeto na Câmara, o que beneficiou o Telegram.

Em outubro de 2021, após longo processo, o TSE decidiu pela improcedência de duas ações que pediam a cassação do diploma e a inelegibilidade por oito anos de Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão, por uso indevido de meios de comunicação na campanha de 2018. A acusação era de impulsionamento ilegal de mensagens via WhatsApp.

Mesmo reconhecendo a ilicitude do uso de disparo em massa em benefício de Bolsonaro, o relator, Luis Felipe Salomão, entendeu que as provas juntadas não foram suficientes para atestar o desequilíbrio da eleição. Seu voto foi seguido pelos demais.

Talvez frustrados com a impossibilidade de uma sentença mais enérgica, alguns magistrados acharam por bem avançar um pouco mais na finalidade institucional da corte e, ao fim do julgamento, passaram a fazer advertências.

Barroso disse que aquela era uma decisão para o futuro, algo para demarcar os contornos que vão pautar a democracia e as eleições de 2022. Alexandre de Moraes foi um pouco mais explícito. “Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado, e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia”, ameaçou.

Para fazer valer essas palavras, a Justiça Eleitoral precisará dispor de conjuntos probatórios que as plataformas não parecem dispostas a oferecer e cuja obtenção os legisladores não se preocuparam em facilitar.

A inexistência de recursos de rastreabilidade combinada ao poderoso poder de distribuição dos aplicativos – e agora à incapacidade até da citação judicial de uma das principais empresas do setor – sugere um descompasso entre o discurso dos ministros do TSE e os elementos que eles terão disponíveis se quiserem agir. (Valor Econômico – 21/01/2022)

Ricardo Mendonça é repórter de Política

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