Luiz Carlos Azedo: No ano que vem a gente não morre mais

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A música Sujeito de sorte, de Belchior, foi um dos hits de 2021, na voz de Emicida, Maju e Pablo Vittar, desde que a velha canção do álbum Alucinação foi sampleada pelo rapper paulista no álbum AmarElo, ganhador do Grammy Latino. A gravação ao vivo, no Teatro Municipal de São Paulo, lotado de moradores da periferia de São Paulo, deu origem a um excelente documentário, uma boa pedida para quem ainda não viu e não quer “olhar pra cima” (ou já olhou) nessa virada de ano. Emicida se destaca não apenas por sua atuação artística, mas também por suas ideias generosas, que trazem para o centro do debate a realidade das periferias urbanas e puxam os fios de história que ligam o hip hop brasileiro ao nosso samba tradicional.

O sucesso da regravação de Sujeito de sorte tem a ver com os tempos de cólera política e de pandemia que estamos vivendo: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado/ Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado/ Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.

Esses versos da canção de Belchior são atribuídos ao mitológico cantador Zé Limeira (1886-1954), um repentista analfabeto, nascido em Teixeira, na Paraíba, imbatível nos seus improvisos surrealistas, segundo o jornalista Orlando Tejo, seu conterrâneo, autor do livro “Zé Limeira – O Poeta do Absurdo”, publicado em 1973. O repentista dominava a rima e a métrica, mas não dava a mínima para a oração, o que era considerado um insulto pelos cantadores de sua época. Entretanto, fazia muito sucesso de público, perambulando pelos sertões nordestinos, em jornadas de até 60 quilômetros a pé, num dia, para participar de desafios com outros cantadores famosos, como o Cego Aderaldo.

Após o sucesso de Belchior, Tejo pleiteou a autoria dos versos, o que gera grandes controvérsias. Não havia documentação sobre a obra de Zé Limeira, cuja vida foi romanceada por Tejo, um defensor da métrica, com suposto propósito de provocar os poetas concretistas. Não importa, a distopia sertaneja de Zé Limeira influenciou outros artistas, como Belchior e Zé Ramalho, e tem tudo a ver com o momento que o país está vivendo, inclusive nessa passagem de ano, na qual uma epidemia de Influenza (H3N2) tomou de assalto as nossas cidades, lotando as emergências do SUS, e a nova variante da Covid-19, a sul-africana Ômicro está chegando com tudo, sem que o país esteja devidamente preparado para ela.

Pensamento positivo

Três doses no braço da maioria dos velhinhos e outros grupos de risco e uma variante aparentemente menos letal, embora altamente transmissível, não justificam as medidas adotadas por Marcelo Queiroga, o falso ministro da Saúde, e Milton Ribeiro, o da (des)Educação, contra a vacinação de crianças e a obrigatoriedade de apresentação do certificado de vacinação nas escolas, respectivamente. São dois negacionistas alinhados com o presidente Jair Bolsonaro, que novamente erra no diagnóstico da pandemia (talvez pense: agora sim, a Ômicron é uma “gripezinha), e aposta outra vez na “imunização de rebanho” para não atrapalhar a economia.

Essa política nos levou a 618 mil mortos até agora. A nova onda da pandemia precisa ser tratada sem alarmismo, mas com responsabilidade, ou seja, com medidas adequadas: vacinação em massa, uso generalizado de máscaras, asseio permanente das mãos e distanciamento social. Não é fácil, numa época de confraternizações, como foi Natal e será o ano-novo, puxar o freio de mão nas comemorações coletivas. Mas a realidade já está mostrando que é preciso cuidado redobrado, ainda mais quando o próprio governo federal sabota a saúde pública e expõe a população aos seus desatinos.

Entretanto, eis a outra face do Brasil, aquela que vai à luta por dias melhores, que adota os devidos cuidados e resiste nos pequenos negócios, nas atividades agrícolas, industriais e de serviços, na cultura e nas atividades essenciais, entre as quais as da saúde, da limpeza urbana, da segurança pública e tantas outras, sem as quais seria impossível os encontros familiares na passagem de ano. Esqueçam o presidente Jair Bolsonaro e seus passeios de jet sky, oremos por milhares de pessoas que chapinham na lama para tentar salvar o que lhes restam de bens, após as enchentes na Bahia, ou buscam socorro médico nas emergências do SUS em todo o país. Como o sertanejo Zé Limeira, vamos pensar positivamente em 2021: ano que vem a gente não morre mais. (Correio Braziliense – 31/12/2021)

Feliz ano-novo!

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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