Ilona Szabó de Carvalho: Legado de violências, crimes e mortes

Resultados da política de descontrole armado do governo são cada vez mais preocupantes

O fim do terceiro ano do governo Jair Bolsonaro se aproxima e os resultados da política de descontrole armado do governo federal são cada vez mais preocupantes para a segurança e a democracia do país. O número de armas nas mãos de civis disparou, enquanto o controle estatal sobre esses arsenais é cada vez menor. O desejo do presidente de que “o povo se arme” se concretiza, aumentando os riscos de mobilização da violência também para fins políticos.

O descontrole de armas de fogo e munições ocorre por uma decisão deliberada do governo federal em enfraquecer a lei e as normativas, extrapolando sua competência, causando caos normativo e cometendo fraudes processuais. A omissão do Congresso Nacional e a demora do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgar ações que questionam decretos do poder executivo aumentam os riscos para toda a população, a cada dia. Além disso, permitem a consolidação da destruição de políticas públicas e instituições por um governo que cultua a morte.

Atualmente, 15 ações tramitam no Supremo questionando a constitucionalidade das mudanças realizadas pelo governo federal na política de controle de armas e munições. O julgamento de 12 ações está suspenso por um pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques desde o dia 17 de setembro, mesmo após o prazo regimental para que os processos voltassem ao plenário. No Congresso, dezenas de projetos de decreto legislativo contra essas mudanças também esperam uma decisão dos presidentes da Câmara e do Senado para serem votados.

Enquanto o Congresso e o STF não agem, caçadores, atiradores e colecionadores –os chamados CACs– desde 2019 acessam quantidades injustificáveis de armas de calibres antes restritos. Caçadores hoje podem comprar 30 armas de fogo e 90 mil munições, ante 12 armas e 6.000 munições até as alterações promovidas pelo atual governo. Já cada atirador desportivo, por exemplo, até 2018 podia comprar no máximo 16 armas e 60 mil munições por ano –quando no topo do desempenho esportivo. No ano seguinte, o limite foi elevado para 60 armas, sendo 30 delas de uso restrito, e 180 mil munições, sem os mesmos requisitos de proficiência.

Levantamento conjunto dos institutos Igarapé e Sou da Paz, a partir de dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação, mostra que, só nos últimos 6 meses, 100 mil novos certificados de registro de atiradores desportivos foram concedidos. O número de pessoas com a licença para o tiro desportivo mais que triplicou desde 2018 até chegar a quase meio milhão de pessoas: o total de registro de atiradores no país passou de 133.085, em dezembro de 2018, para 459.190 em outubro de 2021, um aumento de 237,5%.

Para agravar o problema, o controle dos arsenais no Brasil está cada vez mais enfraquecido. Responsável pela fiscalização dos chamados produtos controlados no país, em 2020, o Exército vistoriou apenas 2,3% do total de arsenais privados no país, que incluem CACs, lojas e entidades de tiro. Importante destacar que os riscos de desvios desses arsenais para a ilegalidade não são poucos: dados obtidos pela Agência Pública mostram que os CACs registram, em média, a perda de três armas por dia.

O Brasil continua sendo um dos países com maior incidência de crimes violentos, incluindo roubos e assassinatos por arma de fogo, no mundo. As mortes são concentradas e fazem de jovens negras e negros as populações mais vulneráveis nos centros urbanos. Líderes indígenas e defensores ambientais também sofrem ameaças e violências crescentes, e se somam aos alvos prioritários em um país onde a força bruta e o desrespeito às leis têm predominado.

Os impactos destes trágicos três anos serão sentidos por muito tempo. O legado de violências, crimes e mortes piora a cada novo dia. O Congresso e o STF precisam agir —e rápido. (Folha de S. Paulo – 01/12/2021)

Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

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