Orçamento é um tema muito pesado para o período de festas de fim de ano. Vamos traduzir assim: Papai Noel passou pelo Congresso e foi muito generoso, deixando um presente de R$ 37 bilhões em emendas parlamentares, das quais R$ 16,5 bilhões naquele famoso orçamento secreto. Aliás ficou apenas meio secreto para ganhar autorização do Supremo Tribunal Federal, que o havia bloqueado. Meio secreto, como as meio grávidas, ele é arma da reeleição de deputados.
Papai Noel foi muito generoso com os partidos e deixou para eles um fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões. Será uma rica campanha num país empobrecido e faminto.
Papai Noel contemplou os policiais federais com um aumento e deixou de fora o restante do funcionalismo.Não cabia presente para todos no seu famoso saco vermelho, ou talvez as renas não aguentassem o peso.
Para o Brasil mesmo, com todos os seus problemas, restou pouco para investir: R$ 44 bilhões, um terço do volume de investimentos de 2012. E olha que nossos problemas hoje são muito mais agudos.
Numa recente pesquisa, o Congresso obteve apenas 10% de aprovação. Ele está se afastando perigosamente da sociedade.
Não se deve falar nisso em período de festa, mas, se o Congresso brasileiro não for mudado, dificilmente teremos um bom 2023.
Não adianta tanto escolher um presidente, embora toda a energia emocional se concentre nisso. A ausência de uma grande bancada comprometida com o país é a base de muitos problemas.
A corrupção é um deles. Como governar sem maioria? Esse dilema ocasionou o mensalão e desembocou em algo grandioso ainda: o orçamento secreto.
Um Congresso fisiológico coloca problemas mais sérios, que vou apenas esboçar neste momento de festas. Ele não vota questões controversas, sobretudo em costumes. Elas são empurradas para o Supremo. Os progressistas sentem um pequeno alívio porque o Supremo brasileiro, de um modo geral, é liberal ao julgar esses temas.
Mas isso cria um ressentimento entre os conservadores, que se consideram tiranizados por uma elite que pensa de forma diferente deles e não foi votada para tomar essas decisões.
Esse ressentimento é facilmente explorado por demagogos que atacam o Supremo por combinar liberalismo nos costumes e leniência com a corrupção.
Sei que não deveria estar falando nisso agora. O tempo de Bolsonaro parece estar no fim. Acredito nisso.
Mas, se não nos interrogamos sobre as condições que permitiram a ascensão de Bolsonaro, ele poderá ressurgir adiante, na pele de outro populista de extrema direita.
O ano que entra será animado e eletrizante com as eleições nacionais. Mas uma forma de desejar bom Ano-Novo é ver um pouco além e aspirar a uma certa estabilidade construtiva para, pelo menos, recuperar o tempo perdido.
O Congresso que nos deixa a pão e água neste ano de 2022 é uma das causas da instabilidade profunda de nosso sistema político.
Sei que essa história de escolher bem o Congresso é velha. Repetimos em todas as eleições, mas, no fundo, nos concentramos apenas na escolha do presidente.
A própria imprensa é capaz de gastar mais espaço com os vices do que com aqueles caras que podem não só infernizar nossa vida, como levar toda a grana para seus projetos, como fizeram agora.
Eles corrompem governos, derrubam, aprisionam governos no seu cercadinho, como fazem com Bolsonaro, e se divertem com nossas emoções em torno da corrida presidencial.
Quem sabe Papai Noel com todos esses presentes enviesados não tenha querido nos deixar pelo menos uma chance de pensar no problema?
Quem sabe não tenha apenas tentado nos punir pela imprevidência?
Como entrar na cabeça de um velho que pilota um trenó movido a renas que voam? Quando passar seu rastro de fantasia, talvez possamos voltar ao assunto. (O Globo – 27/12/2021)
Fernando Gabeira, jornalista