Fernando Exman: Pré-campanha já constrange militares

Ocupação de espaços na máquina pública será alvo de críticas

No início de setembro, quando a Câmara se preparava para votar o projeto de lei complementar que reforma o Código Eleitoral, oficiais das Forças Armadas não escondiam a satisfação com um determinado trecho da proposta. Apoiavam, com entusiasmo, a inclusão dos militares entre as carreiras que precisariam passar por uma quarentena antes de ingressar na política.

A proposta, claro, não teria o condão de impedir o uso da imagem das Forças Armadas por candidatos e partidos. Isto era lamentado e já estava na conta, por ser considerado inevitável, mas, pelo menos, a iniciativa legislativa era vista como um instrumento adicional para a missão dos altos comandos de impedir a politização das tropas. “Quando a política entra num quartel por uma porta”, ouvia-se nas conversas sobre o assunto, “a disciplina sai pela outra”.

Exército, Marinha e Aeronáutica passavam por mais um constrangimento público patrocinado pelo presidente Jair Bolsonaro, que, ao lado de apoiadores mais radicais, preparava novos ataques às instituições para o Dia da Independência. Já a Câmara corria contra o tempo.

Deputados tentavam alterar algumas regras eleitorais a tempo de implementá-las no ano que vem: além dos integrantes das Forças Armadas, juízes, membros do Ministério Público, policiais federais, policiais rodoviários, policiais civis, guardas municipais e policiais militares teriam que se desligar das respectivas funções quatro anos antes das eleições, caso decidissem entrar na vida pública. A intenção dos defensores da proposta era impedir que tais profissionais obtivessem vantagens na disputa, preocupação legítima, sobretudo depois do observado nas eleições de 2018.

O próprio Bolsonaro é exemplo a ser mencionado. Sua experiência como oficial do Exército acabou em 1988, quando o comportamento do então capitão acabou por levá-lo para a reserva. No mesmo ano ele se candidatou e foi eleito para o cargo de vereador do Rio de Janeiro. Tomou posse no ano seguinte e logo na sequência, em 1990, elegeu-se deputado federal. Não saiu da Câmara até 2018, quando venceu a disputa pelo Palácio do Planalto.

As bancadas dedicadas aos temas de segurança também cresceram. Segundo um levantamento feito pelo “G1” à época, o número de policiais e militares eleitos para o Legislativo – assembleias estaduais, Câmara e Senado – aumentou de 18 para 73 na comparação com 2014.

Por isso, primeiro, a ideia dos deputados era aplicar uma nova regra já na disputa de 2022. Como não houve acordo, calibrou-se o texto e ficou decidido que a regra passaria a valer para o pleito de 2026. Ainda assim, a proposta foi aprovada pela Câmara e depois não avançou no Senado.

É até possível que os senadores deem um novo impulso a ela mirando as eleições municipais de 2024, aprovando-a até outubro do ano que vem, ou alterem o texto para fazê-la valer no pleito de 2026. No entanto, isso não mudará o fato de que novamente a imagem das Forças Armadas será usada na campanha eleitoral, de forma a confundir o eleitor sobre o papel destinado a uma instituição de Estado que nos últimos anos vem tentando se afastar do polarizado ambiente político. Aliás: já está sendo.

Um movimento veio de Sergio Moro. O ex-juiz da Lava-Jato e ex-ministro da Segurança Pública fez questão de participar da solenidade de filiação do general Carlos Alberto dos Santos Cruz ao Podemos, em novembro, quando o oficial da reserva destacou que não representava as Forças Armadas ao sinalizar disposição de entrar na política. Não ficou claro a qual posto ele, ex-ministro de Bolsonaro assim como Moro, irá concorrer. O que ficou evidente foi o receio de governistas com um racha no eleitorado militar: pouco tempo levou até circular a informação de que Bolsonaro quer ter novamente um general da reserva ocupando a vaga de vice na sua chapa, e o nome do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, passou a ser citado como opção.

Uma outra novidade será ver o antecessor de Braga Netto, Fernando Azevedo e Silva, na diretoria-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O também general da reserva deixou o governo em março, num momento em que o presidente da República cobrava alinhamento político tanto do auxiliar direto quanto das Forças Armadas. Sua nomeação foi meticulosamente pensada para fazer uma ponte entre a Corte e o universo militar, em meio aos ataques de Bolsonaro contra o Judiciário e as urnas eletrônicas, como se a publicação de seu nome no “Diário Oficial da União” por si só pudesse garantir a estabilidade democrática.

Neste contexto, a competência de Azevedo não é questionada nem por antigos colegas, mas sim, novamente, o emprego de alguém que vestiu a farda por muito tempo – e é relacionado aos militares – para uma missão alheia aos interesses das Forças. Ademais, a presença dele na linha de frente da organização das eleições pode alimentar as críticas ao crescimento exponencial da presença de militares, da ativa e da reserva, em funções estratégicas na máquina pública.

À esquerda, este último ponto já foi definido, inclusive, como algo a ser explorado.

Interlocutores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmam que não basta formular uma norma para regulamentar a entrada de policiais e militares na política. Ou seja, um eventual governo do petista tende a atacar logo o que o partido considera uma militarização da administração pública. “A campanha de 2022 vai ser um suspiro final de um sonho de poder de um segmento que tem, sim, que ter poder, mas subordinado ao papel constitucional que lhe foi definido”, comenta uma fonte. “Vamos ter um governo plural. Isso não quer dizer que não haverá militares em espaços estratégicos, mas não como uma regra”, acrescenta.

Aqueles que acumulam salários, mesmo com respaldo legal, devem ser atingidos. E isso nunca ocorre sem que ocorram turbulências.

De qualquer forma, só em outubro o eleitor definirá qual o perfil do governo irá querer a partir de 2023. Até lá, cabe a cada pré-candidato compreender que seus interesses individuais não devem se sobrepor a instituições de Estado, como as Forças Armadas. (Valor Econômico – 29/12/2021)

Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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