O Brasil atravessa uma contrarrevolução: retrocessos no padrão civilizatório. A eleição de um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal poderia ser sinal de avanço se o novo ministro tivesse dito que sua escolha era vitória da República laica ao quebrar o predomínio histórico do catolicismo. Mas a comemoração em função de sua denominação religiosa indica passo atrás no que deveria ser um passo à frente.
Quebrar o quase monopólio católico seria um avanço, dividir o Supremo por religião é atraso. Ainda mais se o novo ministro servir para compor aliança contra as outras denominações que compõem o imaginário religioso brasileiro: as matrizes africanas, o judaísmo, o islamismo, o budismo e o pensamento ateu. Um ministro evangélico não ameaça conquistas, mas reconhecer que se fez ministro por ser “terrivelmente evangélico”, e não por ser “terrivelmente jurista” pode indicar parte de uma contrarrevolução em marcha.
Aponta também para a possibilidade de contrarrevolução liderada pelo presidente da República, para barrar conquistas da tolerância com mudanças nos costumes, que, nos últimos anos, definiu que o Estado cuida do que é crime e as religiões do que é pecado, separadamente, e sem um se envolver nos assuntos do outro: reconhecimento de casamento entre pessoas do mesmo sexo, direito de as mulheres administrarem seus corpos, fortalecimento da escola pública laica e a busca para construir um país desarmado.
A tolerância, e até a indução ao armamentismo a que o novo ministro parece ser favorável, pode ser parte da contrarrevolução em marcha no Brasil com a tentativa de frear a conquista do Estatuto do Desarmamento. O novo ministro disse que seu trabalho será regido pela Constituição e não pelo livro sagrado de sua religião, mas suas ações nos últimos anos permitem dúvida se ele acredita na ciência para explicar o mundo.
Essa contrarrevolução não se iniciou agora. Quase 20 anos atrás, a transformação do programa Bolsa Escola em Bolsa Família foi uma contrarrevolução por desprezar o papel transformador que viria da educação. A Bolsa Escola representava a dupla revolução de usar dinheiro público para tirar as crianças do trabalho para a sala de aula e mobilizar as mães pobres para zelarem pela educação de suas crianças. Era uma revolução conceitual nas estratégias de enfrentamento da pobreza, saindo do populismo de doar dinheiro sem contrapartida e do economicismo de esperar pelo crescimento econômico; também por empregar pobres para produzirem o que precisam para sair da pobreza. A transformação do Bolsa Escola em programas assistenciais do tipo Bolsa Família e Auxílio Brasil é gesto contrarrevolucionário que, a despeito da qualidade moral da generosidade, deixa de lado o papel transformador e revolucionário.
O fim da responsabilidade fiscal, simbolizado pela ruptura do teto de gastos definido na Constituição, é uma contrarrevolução, no sentido de que aponta para a volta do populismo, do desrespeito aos limites de gastos, que permite a políticos financiarem privilégios e desperdícios e usarem a inflação para concentrar renda entre os ricos por meio da desapropriação dos assalariados e de condenação dos pobres, o que ocorre ao desvalorizar a moeda pela inflação.
O fim da Lei de Responsabilidade Fiscal e do teto de gastos representa contrarrevolução a favor da casta que detém poder para manipular em seu benefício o valor da moeda, sacrificando o povo. A contrarrevolução fica ainda pior quando destrói a revolução da transparência e cria o orçamento secreto para políticos definirem onde aplicar o dinheiro público sem dar satisfação ao público, podendo inclusive promover propinas sem deixar traços.
Também são contrarrevolução o retrocesso e o abandono da educação de base, do ensino superior e da infraestrutura científica e tecnológica que se observa no atual governo, desfazendo o pouco que foi feito por governos anteriores. Esse abandono está transformando a crise brasileira em decadência do Brasil. A negação do papel da ciência e da tecnologia, especialmente no enfrentamento da epidemia da covid-19, é um “terrivelmente retrocesso” na marcha em direção ao reconhecimento da educação de base com qualidade para todos, da ciência e tecnologia como o vetor do processo civilizatório, na promoção da liberdade e do bem-estar das pessoas. (Correio Braziliense – 14/12/2021)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação