Felipe Salto: Por quem os sinos dobram

A motivação para o fim do teto de gastos nunca foi o social, nem foi pelos mais pobres ou pelo bem comum

A quem servirá o cavalo de pau na política fiscal? O desmonte do teto de gastos e do Bolsa Família é revelador. A responsabilidade fiscal e a responsabilidade social são simultaneamente atacadas, quando deveriam andar de mãos dadas. O argumento é de que não haveria outro caminho. Sempre há. A conta será paga pelos mais pobres.

Antes de tudo, registre-se: não há regra fiscal perfeita. Esse tipo de construto jamais teria o condão de transformar a miséria do nosso desenvolvimento econômico e das políticas mal-ajambradas da última década. Para isso, seria preciso ter projeto, liderança, compromisso e ação, sob regras de restrição orçamentária, claro.

O fim do teto de gastos, que denunciei neste espaço em 28 de setembro, sempre foi fonte de preocupação da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal. Em agosto de 2020, o Conselho Diretor da IFI alertou, em documento, sobre os riscos de mudar voluntariosamente o teto de gastos.

Política é poder, ensinou Norberto Bobbio. Nas democracias, delega-se poder a um grupo, por meio do voto, para que conduza o país à luz da Constituição e das leis, isto é, dos objetivos da coletividade. Quando a elite dirigente se perde em meio à falta de objetivos e de sensibilidade social e aposta no vale-tudo para manter-se no poder, essa lógica desmorona.

Se as veleidades pessoais se sobrepõem ao interesse comum, prejudica-se a discussão democrática de regras, de políticas públicas e de como financiar o Estado. Não por outra razão, membros da área técnica do Ministério da Economia deixaram a equipe.

O teto nunca foi a última maravilha do mundo. Mas, como mostrou José Márcio Camargo no Estadão de sábado (Um barco à deriva, 23/10, B2), as medidas anunciadas na semana passada levantaram a âncora fiscal no meio da tempestade. Isso nada tem que ver com a discussão possível e necessária sobre o melhor arcabouço a orientar as contas públicas. Aliás, já está claro que partiremos do zero em 2023.

A melhora da arrecadação destacada pelo governo para justificar o abandono do teto veio da inflação, que perpassa todo o quadro fiscal e econômico em 2021. O aumento da arrecadação tributária decorrente de inflação alta é manjado; não tem nada de bom. Também a dívida sobre o PIB diminuiu, mas porque o denominador inchou com a inflação. Os irresponsáveis que comemoraram esse “feito” fiaram o desmonte do teto.

Essa mudança e o calote nos precatórios, medidas abrigadas na mesma Proposta de Emenda à Constituição n.º 23, detonam a responsabilidade fiscal. Assimila-se oficialmente a contabilidade criativa.

Para ter claro, o teto de gastos será recalculado desde 2017. A inflação de junho acumulada em 12 meses dará lugar à correção pela inflação até dezembro de cada ano (para 2017, variação de 7,2%). Essa “sincronização” é um truque. Ora, nada garantiria que o cálculo proposto redundasse num teto mais distante das cabeças de Bolsonaro e Guedes, exceto o passado. Já se sabe qual foi a inflação em cada período e, assim, basta calcular o teto para 2022 sob a nova regra para ver o que acontece.

De modo direto, a regra atual corrige o teto de 2016 (ano-base) a 2022 em 32%. A nova regra o elevará em 36%. Assim, caso a inflação termine 2021 em 8,7%, o espaço aberto será de R$ 47,5 bilhões. Já o calote dos precatórios gerará folga de R$ 47,4 bilhões. Rombo total: R$ 94,9 bilhões.

É o fim do teto de gastos. O reajuste prometido no âmbito do Auxílio Brasil, novo programa a substituir o consagrado Bolsa Família, e a extensão do Auxílio Emergencial (até dezembro de 2022) vão custar R$ 47 bilhões. Cabe perguntar: para onde vão os outros R$ 47,9 bilhões?

A motivação nunca foi o social. A IFI calculou que seria possível pagar integralmente os precatórios de 2022, com gasto social adicional de cerca de R$ 14 bilhões. A contabilização correta dos precatórios do Fundef (fundo da educação dos anos 1990) abriria outros R$ 16 bilhões, como argumentei no artigo da quinzena passada.

Não é novo o efeito que os ciclos eleitorais produzem sobre a decisão de gastar. Mas o limite é dado pela lei. Mudá-la oportunisticamente disparará o cenário pessimista. O processo é rápido: os juros precificados para o fim de 2022 já estão em dois dígitos e a dívida voltará a subir. A economia crescerá muito pouco no ano que vem, os empregos não virão e a inflação persistirá.

O tiro poderá sair pela culatra se a inflação corroer parte dos ganhos das transferências sociais. Será ainda pior se os gastos adicionais forem direcionados ao tipo de despesa discricionária que se pode fazer em tão pouco tempo: praças mal-acabadas, pinguelas, enfim, dinheiro jogado para o ar.

“Nenhum homem é uma ilha (…); a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” Parafraseando John Donne: perguntem, leitores e leitoras, por quem os sinos dobraram com a morte do teto. Não foi pelo gasto social, pelos mais pobres ou pelo bem comum. (O Estado de S. Paulo – 26/10/2021)

FELIPE SALTO, DIRETOR-EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI. AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO.

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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