Marcus André Melo: O ocaso do populismo iliberal

A sobrevivência da democracia assume formas surpreendentes

Anunciada com grande alarde, a morte da democracia nunca aconteceu. Como afirmou a esta Folha o cientista político Adam Przeworski, ela “virou bordão para atrair imprensa”. Mas, se a democracia não morreu, o que está perecendo é o populismo iliberal; pelo menos é o que sugere a trajetória de suas lideranças canônicas: Trump, Orbán, Salvini, Bolsonaro, Modi, Babis.

O caso mais interessante é o de Orbán, cuja posição é a mais confortável, pois conta com o apoio de 2/3 dos membros do Parlamento húngaro —e as eleições ocorrerão em 2022. Mas a unificação da oposição, que superou o desafio dos quase incontornáveis custos de coordenação, deve causar sua débâcle. A engenharia política envolvida ilumina questões centrais da formação de frentes amplas.

Ao contrário de regimes presidencialistas, o processo envolve os partidos. Sob o parlamentarismo não há espaço para outsiders: o processo de seleção do ocupante da chefia do governo é fundamentalmente parlamentar.

Os seis partidos da oposição lograram negociar uma lista única de candidaturas no componente proporcional das eleições; e um único candidato (o mais competitivo) no componente distrital (a Hungria adota um sistema misto), onde se concentra a fonte das distorções voto-cadeiras. É nele que Órban tem focalizado sua “supermaioria fabricada”.

Em 2014, aumentou a percentagem de cadeiras do componente distrital para 53%; diminuiu quase à metade o número de distritos, reconfigurando seus limites territoriais; e ainda eliminou o segundo turno.

Funcionou. Em 2018, o Jobbik, inicialmente de ultradireita, foi vitorioso em só um distrito mesmo com 23% dos votos. Esse partido tornou-se uma espécie de kingmaker: o protagonista do jogo de formação do governo. O Jobbik perdeu parte importante de seu extremismo (estava à direita do Fidesz, que sob a liderança de Orbán se radicalizou) e aliou-se com a oposição de centro e centro esquerda. A nova aliança é contraintuitiva; envolve partidos do centro à direita radical. A ascensão de Orbán e do Fidesz ocorreu após a implosão do Partido Socialista dos Trabalhadores (MSZP), então no poder e cuja origem remonta ao partido único da era comunista, após escândalos dos quais nunca se recuperou.

Uma explicação possível é que os partidos introduziram uma dimensão ortogonal na competição política centrada na pauta de costumes e da democracia: a corrupção.

O escolhido nas primárias diz tudo: tem 49 anos, sete filhos e se apresenta como ultraconservador nos costumes. Acusa Orbán de alta corrupção e de ter-se tornado um autocrata. A aposta é derrotar um populista iliberal de direita com alguém à sua direita. (Folha de S. Paulo – 25/10/2021)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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