Luiz Carlos Azedo: Oposição é forte, mas dividida

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Convocados por dois grandes movimentos cívicos que emergiram a partir das manifestações de junho de 2013, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, o MBL (Movimento Brasil Livre) e o VPR ( Vem Pra Rua), os protestos de domingo passado receberam a adesão dos partidos de oposição moderada e alguns pré-candidatos a presidente da República, como o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o governador paulista João Doria (PSDB), o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e o ex-candidato a presidente da República João Amoedo (Novo). O PT, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o PSol boicotaram os atos, que nem de muito longe tiveram a força das mani- festações realizadas em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, no Dia da Independência, 7 de setembro. Por quê?

Não existe um motivo apenas. Sem hierarquizar, podemos enumerar alguns, a começar pelo fato de que os organizadores do evento fizeram tudo o que podiam para restringir a presença dos partidos de esquerda, inclusive proibindo bandeiras vermelhas. De outra parte, não havia também nenhuma grande motivação por parte desses partidos para partici- par de um evento no qual a palavra de ordem “Nem Bolsonaro nem Lula” era, literalmente, o pano de fundo. Mas essa foi uma disputa de bastidores da organização do evento. Com a ressalva de que toda manifestação em defesa da democracia deve ser saudada, uma avaliação serena leva à inevitável conclusão de que as ambições de seus organizadores foram frustradas. Não por acaso, o presidente Jair Bolsonaro disse que seus opositores “são dignos de dó, de pena”, na manhã de ontem, à saída do Palácio da Alvorada.

A divisão entre as forças de oposição é mais profunda. Todos estão de acordo com o #ForaBolsonaro, mas o mesmo não ocorre em relação ao impeachment do presidente da República, principalmente de parte do PT. A avaliação da cúpula do partido é de que o ex-presidente da República está quase com o caneco na mão, o negócio é não fazer muita marola e chegar à campanha eleitoral de 2022. Faz sentido, embora seja inconfessável, os petistas serem contra o impeachment de Bolsonaro. Primeiro, por causa da turbulência política e dos riscos de a radicalização isolar a legenda; segundo, porque Bolsonaro]fora da disputa abre espaço para que um candidato de perfil mais moderado ocupe o centro político e receba os votos conservadores por gravitação.

Todos os pré-candidatos que subiram no carro de som dos protestos da Avenida Paulista sonham com Bolsonaro de fora do segundo turno das eleições, em razão do favoritismo de Lula. É da lógica das disputas eleitorais em dois turnos que a segunda vaga ser disputada com chutes nas canelas e dedos nos olhos entre os que seguem o líder. As pesquisas indicam ser mais fácil tomar a vaga de Bolsonaro do que a de Lula. Nove entre 10 analistas avaliam que Bolsonaro perdeu as condições de se reeleger. Entretanto, se outro candidato chegar ao segundo turno contra Lula, o petista pode ser derrotado. Por essa razão, o PT não facilitará a vida de nenhum candidato de oposição. Pelo contrário, tentará mostrar nas próximas manifestações que é a única força capaz de derrotar Bolsonaro.

Resistência institucional

É um erro comparar as manifestações golpistas do dia 7 de setembro com as de domingo para avaliar a capacidade de resistência da democracia aos arroubos autoritários de Bolsonaro. A comparação, porém, serve para demonstrar que não foram os partidos de oposição que barraram a ofensiva antidemocrática. O presidente da República foi obrigado a recuar devido à força das instituições republicanas, principalmente os demais Poderes, sob a liderança do Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro também não tem o apoio das Forças Armadas para dar um golpe de Estado, como ficou evidente na semana passada. A alta burocracia federal, principalmente nas carreiras típicas de Estado, tem verdadeira ojeriza ao estilo de gestão adotado pelo presidente da República.

Voltemos ao começo. As manifestações de domingo mostraram que os chamados movimentos cívicos perderam força, como normalmente acontece com as correntes de opinião pública que surgem nas crises, quando suas organizações e lideranças se institucionalizam. Esses movimentos tiveram um caráter antissistema, ou seja, “contra tudo o que está aí”, no impeachment de Dilma Rousseff. Porém, nas eleições de 2018, sua base mais conservadora foi capturada por Bolsonaro, que as transformou em redes de apoio na internet. Os setores mais moderados, identificados com as ideias e propostas de caráter liberal ou social-democrata, que se deslocaram do bolsonarismo, estão diante de um problema que os movimentos cívicos, por sua natureza, não podem resolver sem os partidos de oposição: encontrar um candidato para chamar de seu. (Correio Braziliense – 14/09/2021)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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