Luiz Carlos Azedo: Feitiços do tempo

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O filme que intitula a coluna é uma história simples, romântica, cheia de clichês, meio pastelão. No Dia da Marmota, o repórter Phil Connors vai à pequena Punxsutawney fazer a cobertura do evento. Por um desses mistérios que somente acontecem nos filmes de Hollywood, o mesmo dia se repete incontáveis vezes. O protagonista fica preso no tempo. É um nonsense, sem nenhuma explicação científica nem preocupação com isso.

A trama se baseia em personagens estereotipados: Rita, a heroína, é certinha demais; Phil é um fracassado, que se sente mal pelo trabalho que faz, escalado todo ano para acompanhar uma festa que odeia. Numa analogia transgressora, o presidente Jair Bolsonaro pretende transformar o nosso Dia da Independência no seu Dia da Marmota. Corre o risco de se tornar prisioneiro do tempo, das manifestações que está convocando para Brasília e São Paulo, pelo resto de seu mandato, qualquer que seja a capacidade de mobilização que venha a demonstrar.

É uma daquelas situações em que o sujeito vira o “burro operante”, como diria o superexecutivo Antônio Maciel Neto (Cecrisa, Grupo Itamarati, Ford, Suzano Papel e Celulose e Caoa Hyundai). Quando o conceito está errado, toda a estratégia é condenada ao fracasso. Atributos como audácia, carisma, coragem, perseverança e resiliência aumentam o tamanho do desastre, porque a execução do planejado leva exatamente a isso. Bolsonaro quer demonstrar capacidade de mobilização de seus apoiadores para pressionar o Supremo e o Congresso a aumentarem seu poder e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista, o que está errado.

Vamos supor que a manifestação seja um sucesso, mobilizando alguns milhões de partidários, como deseja o presidente da República. O que isso tem a ver com os problemas reais da população: inflação em alta, desemprego, crise sanitária, economia devagar, mas devagar mesmo, quase parando? Nada, absolutamente nada. Mais: nesse cenário, prosseguiria sua escalada de desestabilização do Estado democrático de direito, que é um dos grandes fatores de risco para economia brasileira. Nossos problemas objetivos se agravariam, artificialmente, como mostra a experiência de alguns de nossos vizinhos. Suponhamos, porém, que a mobilização não chegue nem perto dessa quantidade de pessoas. Será um ponto irreversível de inflexão de seu governo, que já está descendo a ladeira do fracasso. Perderia a capacidade de iniciativa política.

Governança

Além do conceito correto, o triângulo de sucesso é formado por mais duas variáveis: um método adequado e um ambiente favorável. Bolsonaro não conta com uma coisa nem outra. A coisa mais metódica de sua rotina é voltar cedo para casa. Bolsonaro, segundo os funcionários do Palácio do Planalto, é o presidente da República que menos trabalha. O ambiente caótico que está criando também dispensa maiores comentários. O presidente da República é um daqueles casos citados por Maquiavel n’O Príncipe: chegou ao poder muito mais pela Fortuna do que pela Virtù. Quando as contingências mudaram, passou a enfrentar dificuldades sem as condições pessoais para superá-las, como os príncipes que não conseguem manter o poder quando as contingências mudam e passam a depender mais das próprias virtudes do que da própria sorte.

São feitiços do tempo. O físico Alan Lightman escreveu 30 contos sobre os sonhos do jovem Albert Einstein, então com 26 anos. São fábulas sobre a teoria da relatividade. Traduzidas para mais de 30 línguas, suas 167 páginas inspiraram dramaturgos, bailarinos, músicos e outros artistas do mundo. Tudo acontece entre a primavera e o início do verão de 1905, em Berna, à sombra dos Alpes. Um simples funcionário do Escritório Suíço de Patentes vem tendo sonhos perturbadores, todos eles ligados aos mistérios do tempo e do espaço. Num deles, por exemplo, o tempo transcorre num único dia: nascimento, vida e morte. Em outro, não existe futuro. E há também o sonho em que causa e efeito ligam-se de maneira imprevisível, desvinculando os atos de suas consequências.

Um dos contos se passa num parque, cinco minutos antes de fechar. Um jovem aflito espera a namorada querendo que ela chegue mais rápido, um velho senhor conversa com a netinha querendo esticar o tempo, e o pipoqueiro do parque, metódico, arruma a sua carrocinha com a precisão de um relógio suíço. O tempo da política não é o mesmo da economia, muito menos o da Justiça. A incapacidade de governança começa na forma como Bolsonaro administra o seu próprio tempo, sem levar em conta que é o recurso mais escasso do seu mandato. Perde-se tempo com coisas que não são prioritárias, as verdadeiras urgências do país não são levadas em conta. O melhor exemplo é o apagão energético, em razão da crise hídrica. O impacto do aumento do preço da energia elétrica na vida das pessoas vai se somar ao dos aumentos da gasolina e do gás de cozinha. (Correio Braziliense – 02/09/2021)

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