Eu não ia voltar ao assunto porque, como diz uma amiga, enjoa. Mas os fatos se impõem. Na manhã de quarta-feira, o ministro Paulo Guedes esteve na Câmara dos Deputados. E não conseguiu, como nenhum auxiliar de Jair Bolsonaro consegue mais, escapar de perguntas sobre suspeitas de toma lá dá cá ou corrupção no governo. Guedes respondeu com uma de suas pérolas:
— Não estou vendo nenhuma troca de dinheiro por baixo de mesa, dinheiro de cueca.
O ministro se referia a um episódio da era petista, quando um assessor do deputado federal José Guimarães (PT-CE) foi preso no Aeroporto de Congonhas com US$ 100.500 escondidos na cueca e outros R$ 209 mil não declarados numa sacola. O escândalo foi grande, e Guimarães sofreu um processo, mas em 2012 foi considerado inocente pelo Superior Tribunal de Justiça.
Guedes talvez não lembrasse que seu governo também teve um senador pego pela Polícia Federal tentando esconder R$ 33 mil na cueca. O bolsonarista Chico Rodrigues, que empregava até um sobrinho do presidente da República no gabinete, se licenciou para evitar a cassação, mas voltou ao cargo sem ter sido denunciado pelo Ministério Público.
Inspirado, o ministro da Economia recorreu a mais uma comparação, ao ser questionado sobre o toma lá dá cá com o dinheiro do Orçamento secreto, como ficou conhecido o opaco mecanismo de liberação de emendas em troca de apoio para o governo:
— Há coisas diferentes: uma é o que a Lava- Jato mostrou. Financiamento de campanha, dinheiro por fora. Você aparelha o Estado e coloca lá uma porção de diretores numa Petrobras. Aí teve a delação premiada do presidente da Odebrecht, que falou: “Eu paguei R$ 100 milhões para conseguir o Reiq” (regime de benefício fiscal para a indústria petroquímica). Isso é compra de influência parlamentar.
Mas, ao tentar provar seu ponto, Guedes assumiu sem querer o toma lá dá cá:
—É totalmente diferente do que está acontecendo agora, que é uma emenda impositiva, republicana. Aí fala: “Quem é que é do governo aí?”. A, B e C. “Então, olha, articula suas emendas aqui com o meu ministério e vamos fazer obras públicas que o nosso governo considera importantes.”
Para além da elasticidade dos conceitos do ministro da Economia, que já não surpreende, chama a atenção que ela expressa um discurso cada vez mais comum no bolsonarismo: que a corrupção no atual governo não é nada em comparação com o que se passou na era PT. É como se dissessem que “a nossa corrupção é mais limpinha”.
Nas redes e nos grupos, o que mais se vê é o argumento de que, se a propina não chegou a ser paga, ou se o dinheiro de um contrato fraudulento não foi liberado, então não houve corrupção. Alguém se lembra de já ter ouvido isso antes?
Outra versão do mesmo argumento brotou diante da revelação, pela repórter Juliana Dal Piva, de áudios em que uma ex-cunhada de Bolsonaro diz que o presidente sabia das rachadinhas nos gabinetes da família — tanto que teria excluído do esquema o irmão dela, que não devolvia a parte do salário combinada.
— Rachadinha não é roubo, mas é crime — chegou a dizer um comentarista da Jovem Pan, esforçando-se para enxergar diferença entre roubo e desvio de dinheiro público.
Nos últimos dias, circulou ainda no zap bolsonarista um vídeo antigo mostrando a ex-mulher de Valdemar Costa Neto, cacique do PL, contar na Câmara dos Deputados, durante o escândalo do mensalão, ter visto malas cheias de dinheiro chegando a sua casa. “Já não se fazem mais CPIs como antigamente”, dizia a legenda, sugerindo que só no passado os roubos se contavam em malas de dinheiro. (Em tempo: Costa Neto continua muito influente.)
A piada perdeu a graça nesta quarta-feira, quando o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz, decretou a prisão do ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias em plena sessão, por perjúrio.
Depois de semanas aceitando placidamente as mentiras de integrantes do governo Bolsonaro, como o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten ou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, a CPI mudou de rumo e resolveu morder o governo para valer.
Embora seja legítimo questionar o porquê dessa guinada, do ponto de vista político o recado foi claro: daqui para a frente, quem mentir tem muito mais chances de ir preso.
A história está repleta de exemplos do que acontece quando gente enrolada em esquemas se vê acuada. Paulo Guedes que se prepare. Quanto mais as investigações avançam, mais difícil fica sustentar que há corrupções e corrupções, e que no governo Bolsonaro se rouba mais limpo. (O Globo – 08/07/2021)