Preservar as nossas riquezas exige ação em diversas frentes
Uma parte significativa do ouro consumido e exportado pelo Brasil está manchada por violência. São pepitas de ouro banhadas em sangue de povos indígenas, em um cenário que se torna mais preocupante com o avanço do garimpo ilegal. Qualquer semelhança com os diamantes de sangue da África não é mera coincidência.
As etnias yanomami, kayapó e munduruku, em particular, vêm sofrendo ameaças e pressão crescentes de garimpeiros e grileiros. Como me contou em conversa recente a chefe das guerreiras munduruku, Alessandra Korap, a situação se agravou nos últimos dois anos. Houve um aumento de 363% de área degradada pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Munduruku, no Pará, nesse período.
Os territórios indígenas viveram um maio sangrento. A morte de duas crianças que fugiam de um ataque a tiros contra sua aldeia yanomami foi seguida por ataque à aldeia da líder Maria Leusa Munduruku. Grupos de garimpeiros trocaram tiros com a Polícia Federal —que realizava operação de retirada de garimpeiros de TIs, determinada pelo STF (Supremo Tribunal Federal)— e atearam fogo em sua casa.
Os ataques tentam silenciar lideranças indígenas que fazem denúncias públicas e pedem condições mínimas de sobrevivência. No país em que se mata um ativista de direitos humanos a cada oito dias, querem passar um trator sobre os povos originários. Para tornar a situação ainda mais precária, o Ministério da Defesa informou que não daria apoio às ações da PF na região por falta de recursos, o que gerou cobranças do Ministério Público Federal (MPF).
São muitas as riquezas em disputa, e o ouro certamente não é a mais valiosa. Estão em jogo a preservação do bioma, a sobrevivência de etnias inteiras e a de todos nós. Na avaliação do MPF, cada quilo de ouro representa cerca de R$ 1,7 milhão em danos ambientais. Sem falar nos danos sociais, que englobam escravidão, corrupção e violência, como detalham a plataforma Ecocrime e pesquisas do Instituto Igarapé.
O sistema de controle da prospecção, produção e venda de ouro é falho. Não há exigência de pesquisa para a autorização de permissão de lavra garimpeira. Os certificados que permitem a comercialização são fáceis de adulterar e muitos são fraudados.
O cenário de regras frouxas, aumento do preço do ouro e a defesa de mineração em áreas indígenas pelo governo federal serviram de pano de fundo para uma corrida ao ouro materializada na existência de ao menos 321 pontos de garimpo ilegal hoje na Amazônia. E, como agravante, facções do crime organizado estão cada vez mais atuantes no garimpo ilegal —como demonstram relatos da atuação do PCC em Roraima— e demandam atenção imediata das forças de segurança pública e autoridades.
Preservar as nossas riquezas exige uma ação em diversas frentes. A floresta de pé é o nosso passaporte para o futuro, e é central para a reinserção do país na economia global. Nesse sentido, o Congresso deve rejeitar o PL 191, que abre terras indígenas para mineração, exploração de petróleo e gás e agricultura. A Funai deve reconhecer os territórios indígenas imediatamente (mesmo aqueles com recursos judiciais pendentes) em registros formais das terras.
O Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) precisam digitalizar as notas fiscais do ouro, para interromper o fluxo que financia o garimpo ilegal. Investidores devem redobrar a supervisão de seus portfólios. A responsabilidade também atinge consumidores e a indústria de luxo. Da mesma forma que diamantes extraídos em zonas de guerra no continente africano, as pepitas de ouro da Amazônia podem até brilhar, mas atualmente têm cor de sangue. (Folha de S. Paulo – 02/06/2021)
Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”