Que tal tratar a educação como se fez na defesa do petróleo?
Na discussão da Lei Áurea, em 1888, houve quem defendesse a ideia de abolir a escravidão em cada município que desejasse replicar o feito da cidade hoje chamada de Redenção, no Ceará, em 1884 — e não de modo nacional. Se essa ideia tivesse prevalecido, a escravidão provavelmente teria sobrevivido por décadas. Felizmente, o Império tratou a questão com um olhar para todo o país, de modo equânime. Na educação, porém, a República trata o país como soma de municípios, cada um cuidando de suas crianças de acordo com a vontade de prefeitos e a disponibilidade de recursos. Essa divisão deixou nossa educação entre as piores do mundo e certamente a mais desigual.
Os políticos e muitos educadores recomendam que a má qualidade e a desigualdade na educação de base sejam enfrentadas copiando, nos municípios que desejarem e tiverem recursos, as boas e ainda modestas experiências locais. Em 135 anos de República, nenhum presidente assumiu responsabilidade com a educação de base, sempre deixada para cada família e cada alcaide, desiguais na renda e na vontade política local, sem estratégia de longo prazo nem recursos federais. Quando se trata de vacina, energia, aeroportos, estradas, universidades e formação profissional, o Brasil é a unidade e os municípios são as partes. Quando se trata do ensino fundamental, a unidade tem sido o município. O Ministério da Educação cuida apenas do ensino superior e de raríssimas escolas federais.
Para nossas escolas terem a qualidade das melhores do mundo, seria preciso rever a visão da infância partida pelas unidades municipais. O caminho: tratar a infância como patrimônio nacional e principal vetor do progresso, substituindo as escolas municipais por escolas com padrão federal em todo o território nacional.
Há quase 100 anos, a campanha O Petróleo É Nosso tratou o recurso energético como nacional. Nunca houve o lema “A infância é nossa” para cuidar das crianças onde elas vivem. É ideia recusada por políticos e educadores tanto quanto foi a abolição ao longo de mais de 350 anos, desde o início do tráfico de escravos.
Não se aceita debater a ideia de nacionalização da responsabilidade com nossas crianças nem a consequente federalização da educação, livrando-a dos limites de renda da família e dos constrangimentos municipais. Argumenta-se que o Brasil é grande e diverso, na mesma lógica dos abolicionistas municipalistas em 1888. Esses, até com mais razão, porque economicamente a escravidão era mais necessária em alguns do que em outros municípios, mas a deseducação de cada criança gera um prejuízo nacional, não importa a cidade onde viva.
Um estudo de 2011 feito pelo Senado estimou que as escolas federais — técnicas, colégios militares, institutos de aplicação, Colégio Pedro II — colocariam a educação do Brasil entre as quinze melhores do mundo. A federalização da educação não se faria por um ato ou lei, mas por uma estratégia pela qual o governo federal espalharia as escolas, assumindo paulatinamente a responsabilidade sobre os sistemas municipais, até construir-se um sistema escolar nacional, com descentralização gerencial e liberdade pedagógica, mas com um padrão federal de qualidade.
O primeiro passo dessa estratégia, reafirme-se com insistência, é o Brasil gritar “A infância é nossa” e tratar nossas crianças como há quase 100 anos tratamos o petróleo. (Veja – 21/09/2024 – https://veja.abril.com.br/coluna/cristovam-buarque/a-infancia-e-nossa)