Desfazimentos e omissão

A responsabilidade do Brasil é especial, por termos uma das maiores economias, sermos o maior destruidor de florestas e não usarmos com seriedade nossa força política para defesa e exemplo de desenvolvimento sustentável

Com autoridade de ministra do Meio Ambiente e símbolo mundial na defesa da natureza e do desenvolvimento sustentável, Marina Silva disse que até o final deste século o Pantanal poderá deixar de existir. A responsabilidade por esse desfazimento não é apenas do Brasil: a crise ambiental é resultado de dois séculos, sobretudo sete décadas, de progresso mundial baseado na produção e consumo desenfreados.

Mas a responsabilidade do Brasil é especial, por termos uma das maiores economias, sermos o maior destruidor de florestas e não usarmos com seriedade nossa força política para defesa e exemplo de desenvolvimento sustentável. Apesar da ECO-92, Rio 20, da COP30, do Proálcool nos anos 1970 e do recente esforço na área de energia solar e eólica, o desfazimento que a ministra denuncia para o Pantanal pode ser percebido também para as demais florestas, inclusive a Amazônica, para os rios e as cidades. No mesmo ano em que organizamos a realização da COP30, comemoramos o aumento na produção de petróleo e estamos caminhando para autorizar sua exploração no mar a pouca distância da foz do Rio Amazonas e da cidade onde essa reunião ocorrerá. A destruição de nosso patrimônio natural é apenas uma mostra dos significativos desfazimentos que ocorrem no Brasil.

A violência urbana mostra o desfazimento do tecido social corrompido pela insegurança que caracteriza a sociedade brasileira, cercada e assustada, ameaçada por balas perdidas, assaltos e altíssimos índices de assassinatos; suas crianças impedidas de irem à escola enquanto bandidos e policiais não adotam trégua entre eles. A desconfiança e o medo são provas do desfazimento da convivialidade em cidades partidas por apartação social, com parcela presa em condomínios e parte jogada em calçadas.

A prática política é demonstração e causa de desfazimento pela corrupção generalizada, gigantescos saques e assaltos dos recursos do povo, apropriados ou roubados sob o título de emendas parlamentares enormes e sem destinação de interesse público, e pela perda de credibilidade e legitimidade na democracia usada para atender aos interesses dos políticos e dos partidos enredados no individualismo, imediatismo, eleitoralismo, sem causas e sem propósitos. O Brasil também se desfaz pela instabilidade das regras e da prática do sistema jurídico, movido muitas vezes por razões políticas, não por justiça. A união da corrupção política com a instabilidade jurídica leva ao desfazimento da democracia.

A impunidade, como o crime é tratado, especialmente, o roubo chamado de corrupção, contribui para desfazer o Brasil. Sobretudo quando se percebe a força das milícias e do crime organizado, em cidades e regiões como a Amazônia. O crescimento da dependência das drogas e a ocupação de cidades por cracolândias demonstram um desfazimento do Brasil. No lugar de reduzir a impunidade, a prisão de quase um milhão de criminosos em condições desumanas, a maioria negros, pobres e analfabetos, aumenta o sentimento de desfazimento. Igualmente indicadores são os milhões de jovens que resistem e não caem na tentação da droga, para o consumo ou o tráfico, mas sobrevivem sem escola e sem emprego, sem sonhos e sem perspectivas. Muitos deles sonhando apenas em emigrar para fugir pessoalmente do desfazimento.

O maior exemplo do desfazimento nacional está na permanência da pobreza e da desigualdade social, que assumem o atual quadro de apartação, com a população tão dividida e segregada em condomínios ou favelas que a ideia de nação parece extemporânea. De tão antigo, esse desfazimento social decorre sobretudo da omissão ao longo de décadas ignorando a necessidade de um sistema nacional robusto de educação de base para todos, independentemente da renda ou do endereço da família. Incinerando patrimônio maior do que o Pantanal: o potencial dos cérebros das crianças deixadas sem a educação de base, despreparadas para a busca da felicidade pessoal e para a construção do progresso econômico, com justiça social e equilíbrio ecológico.

A ministra símbolo mundial da ecologia nos alertou para o caso do Pantanal, mas não deve ficar omissa diante dos muitos outros incêndios que desfazem o Brasil em outros setores, especialmente o maior deles: o desprezo pela educação de base. O Brasil precisa enfrentar e punir os que fazem incêndios de florestas, mas também os que ficam omissos diante do descuido com a educação de qualidade para nossas crianças. (Correio Braziliense – 11/09/2024)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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