Fernando Gabeira: O dever de lutar contra o marco temporal

Desde quando, cara-pálida?

Os deputados mais antigos sabem que a Constituição garantiu as terras aos povos originários para fazer uma justiça histórica

O fato de a Câmara ter votado um marco temporal para a demarcação das terras indígenas não me surpreendeu. As ideias de Bolsonaro de que os povos originários devem se integrar à sociedade nacional têm muitos adeptos.

Já visitei algumas distantes aldeias ianomâmis com deputados e militares e ouvi muitos comentários sobre o desconforto em que vivem, seminus na floresta. Como seria bom para eles se tivessem nosso padrão de consumo, andassem de carro, vestissem terno e gravata.

É muito difícil entender outras culturas e religiões, aceitar um tipo de felicidade que não é a nossa. Mas a Constituição de 1988, num momento de lucidez, garantiu que os povos originários têm direito à sua cultura, à sua religião e também às suas terras.

Por trás do desejo de que os indígenas tenham conforto e dinheiro, existe também escondida a cobiça por suas riquezas e suas terras. Não é por acaso que organizações criminosas usando pobres garimpeiros invadem as terras ianomâmis, caiapós e mundurucus, para citar apenas algumas.

Os deputados mais antigos sabem bem que a Constituição garantiu as terras aos povos originários para fazer uma justiça histórica. Não há referência no texto ao marco temporal, limitando a demarcação apenas a terras já ocupadas por eles em 1988.

Havia uma reflexão sobre a formação do país, mas também uma lembrança recente da ditadura. Muitos povos foram deslocados durante o governo militar. A Constituição não foi escrita para reforçar injustiças, e sim, num determinado nível, para repará-las.

O absurdo projeto aprovado na Câmara abre espaço para povos que estivessem lutando na Justiça por suas terras. Mas não é fácil lutar na Justiça quando se vive na floresta, tão distante do mundo branco.

Mesmo aqui no Sudeste, os caiçaras de Trindade só conseguiram manter suas terras ameaçadas porque um advogado se solidarizou com eles e, gratuitamente, conduziu sua luta. Era o velho Sobral Pinto.

Muita gente ainda pensa que o problema dos povos indígenas é apenas deles e de alguns fazendeiros que querem tomar suas terras ou de garimpeiros que querem levar seu ouro. É um pouco mais do que isso. Segundo todas as pesquisas, as terras ocupadas por eles são as mais preservadas na floresta, apesar dos ataques criminosos.

A presença dos povos originários significa um passo importante na luta contra as mudanças climáticas. Apesar de eles serem os principais protagonistas nessa luta, o desfecho dela interessa a todo o planeta que luta contra o tempo para evitar um avanço irreversível no aquecimento global.

A esperança de que o STF mantenha a Constituição tal como foi pensada e escrita em 1988 é mais que razoável. Na verdade, os ministros que pediram vista são os dois indicados por Bolsonaro, que pensam como ele. Isso significa que previram sua derrota e querem apenas ganhar tempo.

Tempo, tempo, tempo. Estão enrolados nesse marco temporal e sabem que não se muda a Constituição no escurinho da Câmara, numa votação simples, como se estivessem decretando mais um feriado.

É bom acentuar que a simples demarcação das terras é insuficiente. As ianomâmis foram demarcadas no início da década dos 90 e até hoje são invadidas. Visitei Raposa Serra do Sol, em Roraima, depois da demarcação e senti que era preciso muito mais.

O atual governo criou um Ministério dos Povos Originários. É preciso que seja muito mais que uma simples marca. Nosso papel de potência ambiental no mundo combina defesa da floresta e florescimento de muitas culturas.

Na Conferência do Rio, em 1992, no fórum alternativo no Aterro do Flamengo, foi esta a grande decisão: a diversidade de culturas é tão importante para a sorte do planeta quanto a diversidade da natureza. (O Globo – 12/06/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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