Luiz Carlos Azedo: A nova onda iluminista e a regulamentação das big techs

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Big techs transformam o capital humano em capital propriamente dito, altamente concentrado, sem controle e sem taxação

No século XVII, as ideias, os pensamentos e os experimentos científicos que reinventavam o mundo adquiriram grandes proporções. Desde a publicação de Dom Quixote de La Mancha, por Miguel de Cervantes, a invenção do romance, em Madri, no ano de 1605, a cortina de um mundo encoberto por ideias preconcebidas e destinos predeterminados havia sido rasgada, tudo estava sendo questionado por intelectuais e pensadores inconformados com os dogmas religiosos e as estruturas feudais. Denis Diderot e D’Alembert, dois intelectuais franceses, resolveram organizar uma grande enciclopédia, publicada entre 1755 e 1772, que reunisse as principais ideias do movimento iluminista, mais ou menos como a Wikipédia hoje, que armazena todo o conhecimento disponível nas redes sociais.

A Enciclopédia tinha como elementos norteadores a liberdade individual, comercial, industrial, de pensar, escrever e publicar; oposição clara às ideias religiosas e ao absolutismo político, que eram considerados obstáculos para a liberdade. Buffon (naturalista francês), Jacques Necker (economista e político suíço), Turgot (economista francês), Condorcet (filósofo, matemático e político francês), Rousseau, Voltaire e Montesquieu (principais filósofos do Iluminismo) escreveram verbetes sobre filosofia, política, economia, artes, ciências, educação e o saber em geral.

A publicação da Enciclopédia influenciou a mudança no pensamento político e social e proporcionou uma nova visão de mundo para o homem moderno, principalmente a partir da Revolução Francesa de 1789. Em vários momentos, foi proibida, por causa dos ataques à religião e ao absolutismo, além do seu programa de reivindicações sociais, traduzido na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pelos jacobinos na Assembleia Nacional francesa. Não por acaso, em muitos momentos e países, a Enciclopédia circulou clandestinamente. Não haveria Revolução Industrial, na Inglaterra, sem a grande onda iluminista que varreu a Europa.

Hoje, vivemos uma espécie de novo Iluminismo: a sociedade do conhecimento. “Os fatores tradicionais de produção — capital, terra e trabalho — deixaram de ser os principais geradores de riqueza e poder na sociedade atual. Na verdade, daqui para a frente, os grandes ganhos de produtividade virão da gestão de um novo fator de produção: o conhecimento”, destaca o professor Marcos Cavalcanti, do Centro de Referência em Inteligência Empresarial, da UFRJ.

Segundo Cavalcanti, a economia do conhecimento deslocou o eixo da riqueza e do desenvolvimento de setores industriais tradicionais, intensivos em mão de obra, matéria-prima e capital, para setores cujos produtos, processos e serviços são intensivos em tecnologia e conhecimento. Mesmo na agricultura e na indústria de bens de consumo e de capital, a competição é cada vez mais baseada na capacidade de transformar informação em conhecimento e conhecimento em decisões e ações de negócio.

Capital social

Assim, o valor dos produtos depende, cada vez mais, do percentual de inovação, tecnologia e inteligência a eles incorporados. Se antes o que gerava riqueza e poder eram os fatores de produção tradicionais — capital, terra e trabalho —, hoje, segundo o Banco Mundial, 64% da riqueza mundial advém do conhecimento. Tais mudanças ocasionam um profundo impacto na economia do país e na vida de milhões de brasileiros. É considerado inovação tudo aquilo que muda o comportamento do mercado, de produtores e consumidores, e gera renda e arrecadação de tributos. Não somente a tecnologia.

É nesse contexto que o PL das Fake News, que regulamenta a atuação das big techs no Brasil, precisa ser debatido. A evolução da internet criou o ambiente adequado ao rápido desenvolvimento das redes sociais digitais, que são instrumentos de comunicação e formação de laços sociais. Mas trata-se, também, de um mecanismo de formação de capital social, em escala sem precedentes, decorrente do uso intenso, espontâneo ou não, das redes digitais pelos cidadãos. Capital social é um conceito desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, que se refere ao conjunto de recursos sociais que uma pessoa possui e que lhe permite agir e influenciar outras pessoas e instituições.

A discussão sobre as big techs, assim, envolve duas dimensões. A primeira é a produção e difusão de conhecimento, que exige um ambiente de liberdade de expressão, no qual os direitos e garantias individuais estejam assegurados. Essa dimensão polariza o debate sobre as fake news e ofusca a segunda, aqui tratada, que é a apropriação desse capital social pelas grandes redes sociais. Em última instância, as big techs se apropriam e transformam o capital humano em capital propriamente dito, altamente concentrado, sem controle e sem taxação. Essa é a grande disputa nos bastidores da Câmara para a regulamentação das big techs. (Correio Braziliense – 28/04/2023)

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