Lula começou a perder a condição de mediador ao sugerir que os ucranianos abrissem mão da Crimeia, invadida em 2014
Estilhaços da guerra na Ucrânia feriram levemente o Brasil, num momento ascendente de nossa política externa. O governo Lula conseguiu romper de forma rápida o isolamento a que Bolsonaro nos condenou. Primeiro, foi o discurso em Sharm el-Sheikh, no Egito, afirmando a política de preservação da Amazônia e do desenvolvimento sustentável. Em seguida, foram as viagens: Argentina, Uruguai, Estados Unidos e China. As coisas pareciam tão bem que Lula decidiu trabalhar pela paz na Ucrânia. É compreensível, porque segue a tradição brasileira e os fundamentos de nossa política externa: a defesa da paz.
Durante a campanha, Lula já fizera uma declaração ambígua sobre a guerra na Ucrânia. Mas isso desapareceu no oceano de declarações de uma eleição nacional em que política externa quase não conta. Lula afirmou que tanto a Ucrânia quanto a Rússia eram culpadas, pois numa guerra ambos os contendores são responsáveis. Talvez tenha sido uma manifestação radical do pacifismo que não bate com a realidade. A Ucrânia foi invadida. Os vietnamitas foram culpados por guerrear contra franceses e americanos invasores? Os antifascistas foram culpados na Guerra Civil da Espanha? Os aliados, por combaterem o nazismo?
Na Argentina, Lula, já empossado, pela primeira vez criticou a invasão da Ucrânia pela Rússia. Ele queria criar um Clube da Paz, e sua mensagem foi bem recebida por líderes como Macron na França. Mas, numa entrevista a um jornal francês, o presidente começou a perder a condição de mediador ao sugerir que a Ucrânia abrisse mão da Crimeia, invadida em 2014. Há muitos russos na Crimeia, mas a região é considerada território ucraniano, e a reação de Kiev e alguns países ocidentais foi negativa.
As declarações de Lula na China praticamente o colocaram próximo da posição de Putin, ao afirmar que Estados Unidos e Europa não deveriam mandar armas para a Ucrânia. Se isso acontecesse, na verdade, os ucranianos estariam resistindo hoje com paus e pedras. Logo em seguida às declarações na China, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, visitou Brasília e declarou que Rússia e Brasil têm uma visão global similar.
Como assim? Lula foi aos Estados Unidos apoiar Joe Biden na defesa da democracia. Um dos escândalos das eleições americanas foi a interferência russa na eleição de Trump. Não há possibilidade de uma democracia e um governo autoritário terem uma visão similar do mundo. É possível compreender a posição da esquerda, que considera o avanço da Otan no Leste Europeu como uma tentativa de asfixiar a Rússia. Mas a resposta de Putin foi adequada? A Ucrânia caiu no colo da Europa, e a Finlândia, um importante vizinho, entrou formalmente na Otan.
Se a esquerda brasileira pensa assim, é compreensível. Acontece que as eleições não foram vencidas apenas por ela, mas por uma frente um pouco mais ampla. A política externa de um país, sobretudo nessas circunstâncias, não pode ser reflexo de uma visão partidária. Não se trata de obedecer aos Estados Unidos. O problema central é que Biden também é acossado internamente, apoiou as urnas eletrônicas e condenou as invasões de 8 de janeiro. Os europeus, sobretudo Noruega e Alemanha, financiam o Fundo Amazônia.
Os Estados Unidos acabam de anunciar um aporte de US$ 500 milhões para salvar a floresta, tentando dobrar a ajuda com a iniciativa privada. O meio ambiente não depende de declarações infelizes, embora adeptos do governo tendam a achar que foram elas que dinamizaram a ajuda. O autoengano é livre.
Tudo bem negociar com os russos, mais ainda com os chineses, nosso maior parceiro comercial. Mas há também comércio com Europa e Estados Unidos, além de um vínculo especial: todos somos regimes democráticos. A incompreensão dessas circunstâncias pode enfraquecer o esforço para romper o isolamento internacional. Atropelar a ideia de uma frente democrática com uma visão única da esquerda pode conduzir o governo a um tipo de solidão que interessa à extrema direita, sobretudo a ela. (O Globo – 24/04/2023)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor