Nem o frisson imitativo do ‘assalto ao Capitólio’ em 2021 e a nem tomada crível do poder dão conta do episódio
Alguns analistas apontaram um paradoxo do “assalto ao Capitólio” no Brasil: o que queriam os invasores, se o atual governo já tinha tomado posse? Para Anne Applebaum, os eventos só fazem sentido se vistos como “uma tentativa de criar um eco visual dos eventos de Washington”. Ross Douthat, por sua vez, afirmou que se tratava de “ato de pura encenação desvinculado das realidades do poder”, marcado por “frisson imitativo”: “Estavam envolvidos em uma brincadeira, não numa intervenção política séria”. Para Yascha Mounk, a cena é surreal: “Pareciam querer fazer cosplay de rebeldes americanos”.
Foram longe demais.
É certo que a argumentação dos analistas é um corretivo para a visão rival de que estaríamos diante de uma ameaça crível de golpe. Claro, para parte da malta ensandecida a tomada de poder era o objetivo, mas o caráter demencial do intento não pode escamotear seu caráter quixotesco. “L’armata Brancaleone”, desarmada e sem evidência de apoio efetivo das Forças Armadas ou liderança militar relevante, deparou com o único desenlace possível: a prisão dos envolvidos. Isso vale, mutatis mutandis, para os EUA. Sim, lá ocorreu interrupção de sessão de ratificação das eleições; aqui, tumulto após a posse. Mas por que isso importaria?
A minuta do decreto de estado de defesa desvela o alarmante cálculo estratégico do Executivo, mas sua conexão direta com a depredação não é evidente. O decreto deve ser expedido pelo presidente, ouvidos o Conselho da República e o de Defesa Nacional, e submetido em 24 horas ao Congresso para aprovação, por maioria absoluta, em até 10 dias, o que obviamente só faria sentido até Lula tomar posse.
O que deve ser objeto de análise entre nós são as razões de sua não expedição, e sobretudo o êxito na depredação. Aqui misturam-se fatores ainda não esclarecidos —boicote, negligência, indefinição de papéis em uma transição de governo.
Há sim diferenças notáveis entre os dois eventos. A fúria atingiu aqui os três Poderes, mas mirou o STF e o palácio presidencial, poupados no caso americano. Ao contrário de Trump, Bolsonaro não teve papel público ativo, o que poderia ser explicado por eventual cálculo estratégico ainda por esclarecer, mas sobretudo por ser ele um “weak strongman”: que conta com apoio minoritário na opinião pública, no Congresso, nas Forças Armadas, e enfrentando Judiciário independente e hiperbólico na resposta. O silêncio de Bolsonaro não se explica só por idiossincrasias, mas pelas instituições e ambiente estratégico (não conta com apoio majoritário) que o constrangem; pelo temor dos controles.
Enfim, nem frisson imitativo nem tomada crível do poder dão conta do episódio. (Folha de S. Paulo – 16/01/2023)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)