Há uma liderança clara aqui: é o bolsonarismo que alimentou nos últimos anos a visão golpista da política
A invasão dos prédios dos Três Poderes por terroristas bolsonaristas foi o maior ataque à democracia brasileira desde sua restauração, em 1985. O país vive o momento democrático mais longo de sua história, mas tendências políticas e sociais autoritárias ainda são relevantes, representadas principalmente pelo bolsonarismo e por grupos extremistas que orbitam em torno dele. Embora a tentativa de golpe de Estado tenha fracassado, e as instituições tenham reagido fortemente contra os vândalos fascistas, o perigo continua rondando o Brasil.
A batalha pela democracia não acabou com o Capitólio à brasileira. Três frentes deverão ser enfrentadas para garantir o regime democrático nos próximos anos. A primeira envolve fortalecer as instituições contra ameaças autoritárias. Isso passa, de início, pela recuperação dos órgãos que, de algum modo, colaboraram com o bolsonarismo. O Ministério Público Federal (MPF), sobretudo a cúpula, as polícias Federal e Rodoviária e, com grande destaque, as Forças Armadas e as PMs têm de ser direcionadas a um comportamento republicano e democrático.
O MPF terá de atuar mais firmemente nos diversos processos que surgirão contra os terroristas e seus financiadores, incluindo atuações que atingirão a família Bolsonaro. A PF e a PRF terão de se guiar pela defesa da ordem democrática e serão essenciais na investigação e controle de grupos de extremistas que agem subterraneamente na sociedade. Mas o maior desafio será desbolsonarizar as Forças Armadas. Nos últimos anos, vários de seus integrantes, da reserva e da ativa, compraram o modelo golpista bolsonarista.
A culpa da verdadeira barbárie que tomou conta de Brasília não foi somente da PM do Distrito Federal. As Forças Armadas foram cúmplices neste processo. O problema é que o episódio causou uma enorme reação na sociedade brasileira e, sobretudo, das principais nações do mundo. Desse modo, ao flertar com o golpismo, as Forças Armadas podem perder a legitimidade interna e externa, neste caso principalmente dos Estados Unidos. Seria a maior desmoralização de sua história, o que dificultaria o exercício de seu papel essencial para a manutenção da ordem nacional. Caxias deve estar se remexendo no túmulo de revolta e vergonha com a instituição que criou.
A frente institucional também passa pela ação firme do Legislativo, do Judiciário e da Federação contra os golpistas e terroristas que seguem o bolsonarismo. É preciso dizer em alto e bom som: a vitória desses extremistas seria a destruição da legitimidade de toda a classe política e dos membros do sistema de Justiça. O STF e o TSE foram os guardiões da democracia nos últimos meses, e agora precisarão muito da atuação conjunta com a Câmara, o Senado, os governadores e o presidente da República. Aliás, o Executivo federal tem de se abrir mais para grupos políticos e sociais mais diversos do que o petismo se quiser evitar o caos autoritário.
Uma segunda frente da batalha pela democracia é a investigação e a punição de todos os responsáveis pela construção do mais amplo movimento de complô contra o regime democrático brasileiro. Há uma liderança clara aqui: é o bolsonarismo que alimentou nos últimos anos a visão golpista da política, cujo resultado último foi a mobilização de terroristas financiados por agentes econômicos. O 8 de janeiro foi o dia da infâmia contra os valores mais profundos da civilização brasileira e, por isso, é fundamental punir sua principal liderança: o ex-presidente Bolsonaro.
Por fim, há uma luta de mais longo prazo para garantir a solidez da democracia brasileira. É a batalha social pelos corações e mentes dos brasileiros em torno de ideais e práticas democráticas. Muitos parentes e amigos dos terroristas estão desesperados neste momento e precisam de ajuda. Muitos dos que votaram em Bolsonaro estão sem chão no momento e precisam de apoio. As escolas, igrejas, empresas e as padarias da esquina precisam conversar sobre democracia. O extremismo é mais profundo do que as mobilizações dos terroristas em Brasília. É fundamental ouvir especialistas como Michele Prado e Guilherme Casarões, que estão acompanhando as redes de ódio montadas nos últimos anos. Para se livrar do autoritarismo e da desgraça econômica, social e internacional que adviria de sua vitória, o país terá de semear flores democráticas que tragam esperança a todo o povo brasileiro. (O Globo – 10/01/2023)
Fernando Luiz Abrucio, doutor em ciência política pela USP, é professor e pesquisador da FGV-SP