Para historiador, a descrição do avanço da esquerda na região como uma ‘maré rosa’, que estaria ocorrendo de forma coordenada, reflete ‘a eterna busca da utopia latino-americana’ pelo grupo (Foto: Reprodução/RP)
José Fucs – O Estado de S. Paulo
O historiador Alberto Aggio é um dos poucos entre os seus pares no País que se levanta contra o apoio da esquerda latino-americana a ditaduras como as de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Aggio se dedica ao estudo da história política na América Latina e escreveu o livro Um Lugar no Mundo: Estudos de História Política Latino-Americana (Ed. Contraponto).
Nesta entrevista ao Estadão, que faz parte da série sobre o avanço da esquerda na América Latina, ele diz que a Revolução Cubana ainda é uma referência para o grupo. “A ideia de ‘revolução’ continua viva no imaginário da esquerda latino-americana”, afirma.
Segundo Aggio, a caracterização da ascensão da esquerda na região como uma “maré rosa”, que estaria ocorrendo de forma coordenada, reflete “a eterna busca da utopia latino-americana” pelo grupo. Para ele, no Brasil, houve uma forte decepção com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua passagem pela Presidência. “Vimos muita frustração com o Lula em relação à ideia de uma esquerda pura, que não é corrupta.”
Como o sr. vê o avanço da esquerda na América Latina, chamado por políticos e militantes do grupo de “nova maré rosa”?
Existe uma sedução em se falar em “nova maré rosa”, em “nova esquerda” na América Latina. Há a ideia de que esteja acontecendo uma coisa nova, novíssima, que precisa ser de alguma maneira caracterizada. Acredito que isso é uma espécie de tentação, já que, no início dos anos 2000, muita gente considerou a ascensão de Hugo Chávez, na Venezuela, do Lula, no Brasil, e de outros representantes de esquerda na região como uma primeira “maré rosa”. Então, neste novo momento, em que houve de fato vitórias de líderes e de políticos de esquerda, há a sedução de se dizer: “Olha, nós estamos entrando numa nova onda de esquerda”. Para mim, a caracterização desse fenômeno como “nova esquerda” e “nova maré rosa” reflete muito mais um desejo de que isso esteja acontecendo do que à realidade, porque assim não é preciso pensar na particularidade de cada momento político nos diferentes países da América Latina.
Em sua avaliação, o que está por trás dessa ideia de que está acontecendo uma nova “maré rosa” na região?
A visão de que esteja acontecendo uma nova guinada à esquerda na América Latina reproduz, de certa forma, a ideia de “revolução”, que continua viva no imaginário da esquerda latino-americana. Embora não esteja acontecendo uma revolução, há uma expectativa de que a América Latina esteja mudando, de que ela esteja mudando em conjunto e de que esse conjunto represente a expressão dessas forças políticas que mal ou bem se chama de “esquerda”. Podemos dizer também que isso resgata, em certa medida, a eterna busca da “utopia latino-americana”, da “utopia do novo mundo da América”. Se não há um programa claro, e não há, pelo menos fica a impressão de que a América Latina esteja retomando a utopia. Para eles, é sempre esse mundo dividido entre esquerda e direita, entre bem e mal.
Que utopia é essa que o sr. menciona? De onde vem essa coisa?
A Revolução Cubana foi a grande expressão dessa visão, a partir dos anos 1960. Foi a primeira “onda vermelha” da América Latina. Depois, veio justamente o ciclo que comentei há pouco, a partir do início do século 21.E agora, em função da crise, dessas direitas que enfrentaram esses grupos de esquerda que subiram ao poder, como na Argentina, com o (ex-presidente Mauricio) Macri, e no Brasil, com o (presidente Jair) Bolsonaro, vem essa sedução de se pensar numa nova guinada para a esquerda.
Hoje está claro que não é possível que um novo governo atue nos mesmos moldes do que foi o governo Allende no Chile
O que explica o fato de a Revolução Cubana ainda estar presente, em pleno século 21, no imaginário da esquerda latino-americana?
A Revolução Cubana é um referencial muito forte para a esquerda na América Latina. Apesar de ninguém nessa nova onda de esquerda na região se reportar à Revolução Cubana de maneira explícita, como nos anos 1960, quando o (guerrilheiro Carlos) Marighela (1911-1969) imaginava que iria fazer a mesma coisa aqui no Brasil, o lulismo e algumas de suas bases acreditavam mais ou menos nisso dez, vinte anos atrás. Num certo momento, com a referência da Revolução Cubana, pensava-se que a América Latina tinha de buscar sua unidade e que cada país, com sua perspectiva nacional, deveria encontrar uma espécie socialismo com características próprias, como o chamado “socialismo moreno” do (ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul Leonel) Brizola (1922-2004) e o Chile do (ex-presidente Salvador) Allende (1908-1973). Tudo isso é resultado de uma maneira de a esquerda pensar a América Latina na segunda metade do século 20. Hoje, está claro que não é possível que um novo governo atue nos mesmos moldes do que foi o governo Allende no Chile, no início dos anos 1970.
O que os líderes dessa nova onda de esquerda na América Latina têm em comum?
Na verdade, há poucos pontos em comum entre eles, além do fato de alguns personagens virem de partidos de esquerda, os mais variados possíveis. As diferenças existentes nos casos do Chile, da Argentina, do México, do Peru e do Brasil, caso se confirme uma vitória do Lula nas eleições de outubro, são muito maiores do que as semelhanças. Tanto em termos de contexto, como de personagens e de projetos de poder. As características de cada país são muito fortes, muito específicas, ainda que esteja claro que haja uma frustração de expectativas com as lideranças e os governos de centro, centro-direita e até direita extremada, que também são muito diferentes entre si, que chegaram ao poder no Brasil, na Argentina, no Chile, no México, no Peru e na Colômbia.
Na primeira onda de esquerda na região, a impressão é de que havia uma unidade maior entre líderes do grupo na defesa de regimes autoritários como os de Cuba e da Venezuela. Hoje, aparentemente, já há fissuras nessa visão. Como o sr. analisa isso?
Sim, perfeitamente. A Venezuela chavista era algo que unia o pessoal na primeira onda. Hoje, se a gente considerar os líderes de esquerda que venceram eleições e se tornaram líderes de Estado, o posicionamento deles não é de um alinhamento igual ao que existia no início do século 21. Agora, uma coisa é o que o (presidente Gabriel) Boric, no Chile, fala, porque ele está no exercício da presidência, e outra são os movimentos de esquerda que formam sua base de apoio. Isso é válido também para o Lula, no Brasil, e para o (presidente Gustavo) Petro na Colômbia. Nem vou falar do Peru e do Equador, que são muito instáveis. Isso se reproduz também em escala global em relação à polarização Estados Unidos X China. Apesar de alguns países da região terem se alinhado à China, existe agora uma nova teoria, o chamado “não alinhamento ativo” a uma das duas superpotências. A questão da Rússia também voltou a aparecer. Alguns setores de esquerda no Brasil, por exemplo, ficaram muito seduzidos em apoiar o (presidente russo Vladimir) Putin numa guerra contra a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), resgatando o velho anti-imperialismo que essa esquerda cultivava.
A Venezuela foi parar num regime ditatorial, quando se imagina que a esquerda seja liberadora e represente o máximo de democracia possível
Alguns analistas dizem que vai ser muito difícil a esquerda cumprir suas promessas de campanha no atual cenário de crise global. Qual a sua posição nesta questão?
É claro que, num contexto mundial de crise, imagina-se que depois sempre vem uma grande mudança, mas pode também vir uma grande frustração. Foi o que aconteceu na primeira onda do século 21. A Venezuela foi parar num regime ditatorial, quando se imagina que a esquerda seja libertadora e represente o máximo de democracia possível. O resultado lá foi uma ditadura, não mais democracia. Vimos muita frustração com o Lula aqui no Brasil também, em relação à ideia da esquerda como força democratizadora, como agente de justiça social, de igualdade, de um conjunto de utopias que está presente no imaginário do grupo, na ideia de uma esquerda pura, que não é corrupta. Na realidade, isso não aconteceu – e não foi por falta de tempo nem de apoio popular. É óbvio que agora as pessoas esquecem de tudo isso.
Que papel que o Lula deverá representar nessa onda de esquerda, caso vença as eleições?
A vitória do Lula, já bastante saudada pela imprensa latino-americana e europeia, que é inclinada à esquerda, será celebrada como um grande avanço pelo grupo. Pela força de sua economia, o Brasil ocupa um lugar importante na região e uma eventual vitória do Lula vai ter repercussão nesses outros governos. Agora, do ponto de vista internacional, acredito que ele deverá seguir essa nova linha do “não alinhamento ativo” que eu mencionei há pouco. O Lula é hábil em jogar conforme a plateia e a conjuntura. (O Estado de S. Paulo –