Fernando Gabeira: O diabo na rua no meio da campanha

A imprensa fala de uma guerra santa, movida pela campanha de Bolsonaro. Isso interessa a ele, que vê guerra em todos os lugares, possivelmente porque a vive dentro de si próprio. Além do mais, não tem nada de santa: apenas uma tática para assustar as pessoas.

Por isso que o demônio ganhou tanto peso no discurso oficial; ele é apontado aqui e ali, como se fosse um atributo da oposição.

O diabo é um dos grandes temas do monumental “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Mas aparece com tantas nuances na cabeça do jagunço Riobaldo que alguns intérpretes afirmam que o escritor usa o diabo para descrever a visão do mundo da personagem: um mundo de coisas impermanentes, transitórias, sem existência autônoma. Para alguns, o budismo no sertão de Minas.

O diabo existe ou não existe? Riobaldo já nos primeiros parágrafos fala de um bezerro com cara de cachorro que ria como uma pessoa. Foi morto porque era diferente.

Mas é pela sabedoria de um compadre Quelemém que ele chega à conclusão de que o diabo “vige dentro do homem, nos crespos do homem — ou é o homem arruinado ou o homem ao avesso. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”.

Uma das mais importantes lições de seu compadre Quelemém é esta: o que gasta e vai gastando o diabo dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer e a alegria do amor.

Infelizmente não posso falar só de Riobaldo e dos nomes do diabo que, para ele, é um falso imaginado: Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, Muitos-Beiços, Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, Fancho-Bode, Treciziano, o Azinhavre.

Se a sabedoria do compadre Quelemém baixasse, de repente, na campanha presidencial, o diabo não teria papel algum. Tudo o que se pode dizer nesse campo é afirmar a liberdade de religião. O resto são problemas concretos que temos de enfrentar, domando o diabo dentro de nós e nos abstendo de denunciá-lo no outro.

A fome, por exemplo. Escrevi um artigo no fim de semana sobre uma possibilidade de combate à fome, unindo governo, agronegócio, agricultura familiar e sociedade. Baseei-me num livro de Mariana Mazzucato, “Mission economy”, que fala do poder de realização quando todos se unem para realizar uma determinada tarefa. Seu exemplo inicial: a ida do homem à Lua, o projeto Apolo.

Outra possibilidade que abordei é a redução do abismo de acesso digital entre crianças ricas e pobres. E para completar: o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Minha intenção é fugir de debates como essa falsa guerra santa, sem cair na ilusão de que vamos discutir programas de governo completos. Pela minha experiência, um número insignificante de pessoas examina todo o programa dos candidatos.

Uma saída é escolher ideias-força e tentar jogá-las no debate. O combate à fome é uma delas. Quando se fala nisso, a tendência é reduzir a proposta à simples transferência de renda. O que é muito pouco.

Da mesma forma, um programa de educação detalhado talvez não tenha muito público. Mas a proposta de reduzir o abismo no acesso digital é algo bastante inteligível, sobretudo depois da pandemia. E a redução desse abismo não se limita às crianças, mas também às famílias mais vulneráveis.

Finalmente, a Amazônia é a grande oportunidade do Brasil. É a região potencialmente mais rica e mais importante não só para nós, como para todo o planeta. O que seria do Brasil sem a Amazônia? Para muitos, somos apenas a periferia da Amazônia.

Enquanto discutimos o diabo na rua, em plena campanha, os grandes temas nacionais ficam na penumbra. Não somos o Irã ou o Afeganistão, onde religião e governo são indissociáveis.

O debate religioso, para além do consenso sobre a liberdade de credo, só interessa às pessoas que querem nos jogar num mundo pré-moderno, cuja característica principal era exatamente a não separação entre Estado e religião.

Vamos esquecer o diabo ou, como diz compadre Quelemém, vamos gastar com o amor o que existe dele em nós: solto por si, repito Riobaldo, cidadão, não existe diabo nenhum. (O Globo – 22/08/2022)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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