O fantasma da venezuelização reemergiu no debate público; desta vez com o sinal trocado. Daron Acemoglu, em entrevista recente, fez paralelo entre a reeleição de Jair Bolsonaro e o fenômeno Hugo Chávez. Em 2018, a referência era ao PT. Em ambos os casos, o paralelo com aquele país é descabido.
A ciência política já identificou robustos preditores de democracia. Destaco três. A experiência com democracia ou regimes semicompetitivos, ex. França no século 19 (Dahl); renda per capita (Svolik); recursos naturais (ex. petróleo/gás) (Ross); aqui o timing é crucial: se descobertos sob democracia (Noruega), o efeito é virtuoso; do contrário, uma maldição.
Vejamos o caso da Venezuela.
A política no país foi dominada por quatro séculos (1901-1935) por Juan Vicente Gómez (“el bagre”), o arquetípico tirano caudilhesco. Chefe militar e vice-presidente após a guerra civil, ele ascende ao poder num golpe (1908). O regime é sultanístico —o irmão e o filho foram nomeados vice-presidentes— e sobreviveu até 1941.
Após curtíssimo interregno democrático (1945-48), juntas e generais governaram o país por uma década. A democracia é estabelecida pelo Pacto de Punto Fijo (1948): um arranjo de partilha de poder entre os partidos rivais, no qual cargos públicos e ministérios eram alocados por cotas.
A estabilidade democrática durou duas décadas. Sim, a renda era elevada, mas artificial, turbinada pelo boom do petróleo nos anos 70. Em repúdio à partidocracia e ao conluio das elites, Chávez funda, em 1982, o Movimento Bolivariano Revolucionário. O declínio das rendas petrolíferas produziu, em 1989, o Caracazo, que teve 2.000 vítimas. Três anos depois, dois golpes fracassados, e Chávez é preso. Carlos Andrés Perez sofre impeachment. A partidocracia ruiu.
Por trás desta dinâmica está a maldição de recursos naturais. O petróleo foi descoberto em 1914, sob Gómez. Concessões corruptas a Standard Oil e Shell fizeram dele o homem mais rico da América Latina. O “tirano que vendeu a pátria” e o bloqueio naval teuto-britânico a Caracas, por default da dívida externa (1903), forjaram o nacionalismo mais virulento da região.
O distributivismo rentista tinha como pré-requisito as rendas petrolíferas.
Uma economia inteiramente dependente do petróleo significa que o sistema político é vertebrado pelo estado e orientado para a captura daquelas rendas. Empresariado e a sociedade civil são débeis.
O espectro de venezualização é mero produto da polarização atual. No lugar de Gómez, tínhamos Epitácio Pessoa (um juiz do STF); de 1825 a 1964, nosso parlamento foi fechado por apenas sete anos (sob Vargas); sim, o pré-sal distorceu incentivos, mas não é a bacia do Orinoco. (Folha de S. Paulo – 15/08/2022)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)