Luiz Carlos Azedo: As metamorfoses do governo Bolsonaro

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Uma das dificuldades de caracterização do governo do presidente Jair Bolsonaro decorre do fato de que não existe um projeto político claro que oriente as ações, tudo acontece na base do improviso, diante da necessidade de manter o poder. Por essa razão, desde o primeiro momento, mas principalmente depois da derrota de seu aliado principal, Donald Trump, sempre considerei a hipótese de que haveria uma aproximação estratégica de Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Só não imaginava que isso viria a ocorrer em razão da guerra da Ucrânia. Sobre isso falaremos mais adiante.

Inicialmente, cabe destacar, tão logo tomou posse, o governo Bolsonaro assumiu características bonapartistas, em contradição com uma ordem democrática presidida pela Constituição de 1988. Por que essa caracterização? Ora, em razão de Bolsonaro se colocar acima da sociedade e se apoiar essencialmente nas Forças Armadas, constituindo um governo com grande número de militares, maior até do que o dos presidentes Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, todos generais-presidentes. Grosso modo, o bonapartismo consiste no fato de que um indivíduo se coloca acima de todas as partes do Estado e da sociedade, ou seja, fulaniza o vértice de poder.

Não durou muito esse modelo esquizofrênico. A pandemia se encarregou de derrotar a hegemonia militar no governo, sobretudo porque o general Eduardo Pazuello, à frente do Ministério da Saúde, encarregado de implementar as teses negacionista de Bolsonaro, levou ao colapso o sistema de saúde pública, quando perdeu o controle sobre a covid-19, que já matou mais de 675 mil pessoas. Concomitantemente, o impacto da pandemia na economia, em razão da necessidade de distanciamento social e redução da atividade econômica, também levou ao fracasso o poderoso ministro da Economia, Paulo Guedes, cujo projeto neoliberal foi para o espaço, com o país mergulhado no desemprego, na inflação e na fome.

Deu-se, então, a metamorfose da transformação de um governo bonapartista num governo reacionário de viés populista, como o que temos hoje. O conceito é mais adequado porque Bolsonaro entregou o comando político do governo e o Orçamento da União ao Centrão, ao nomear para a Casa Civil o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), e aceitou que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desse as cartas na distribuição de recursos federais aos parlamentares da base governista e, também, de uma boa parcela da oposição. O chamado “orçamento secreto” é um iceberg, que ainda pode virar um grande caso de polícia. Na farra das emendas ao Orçamento, um conjunto de medidas regressivas vem sendo aprovado pelo Congresso, a mais recente é a PEC das Eleições, que viola a legislação eleitoral e rompe completamente com os paradigmas do equilíbrio fiscal.

Estamos agora na iminência de uma nova metamorfose, que tem como pano de fundo as eleições presidenciais. Agora, sim, Bolsonaro tenta consolidar, pela via eleitoral, um projeto de regime político “iliberal”, como ocorre em muitos países da Europa e do Oriente, com tutela militar. Esse conceito surgiu num artigo de Fareed Zakaria de 1997 para a revista Foreign Affairs, em resposta ao questionamento do diplomata americano Richard Holbrooke, às vésperas das eleições de 1996 na Bósnia: “O que dizer quando uma eleição ocorre de modo livre e justo, mas o povo termina por escolher racistas, fascistas, separatistas e outros agentes publicamente contrários à paz e à integração?”

Zakaria transpôs a questão da ex-República da Iugoslávia para vários outros locais do mundo, onde governos eleitos ou referendados legitimamente costumam ignorar os limites constitucionais e privar a população de direitos fundamentais. Ao incluir a Rússia entre esses países, o conceito ganhou asas: Boris Yeltsin, na época presidente, até então era visto no Ocidente como o reformador responsável pela abertura da Rússia, inserindo-a decididamente no mapa do neoliberalismo.

Amigo de Putin

Todos os homens do Kremlin — os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin, de Mikhail Zygar (Vestígio), é um livro-reportagem com detalhes reveladores sobre como o líder russo “se tornou rei por acaso”, levado ao poder por oligarcas e políticos regionais, que o acolheram ao mesmo tempo em que manipulavam seus medos e ambições. Com o tempo, demonstrou uma habilidade incomum para se manter no poder e assumir o controle do grupo com mão de ferro. Sua imagem de líder jovem e modernizador, porém, não convenceu o Ocidente. Seu projeto inicial de integração da Federação Russa à União Europa foi rejeitado pela primeira-ministra alemã Angela Merkel.

Essa rejeição, que considerou uma humilhação, e a ambição de se perpetuar no poder levaram Putin à guinada nacionalista e autoritária que vem marcando sua trajetória. A consolidação de seu poder se deu em razão do apoio popular à ideia de restabelecer o status de potência mundial da Rússia e à agenda conservadora dos costumes, da aliança com os militares e com a Igreja Ortodoxa, e do controle dos meios de comunicação, dos órgãos de segurança, do Ministério Público e do Judiciário.

A empatia entre Putin e Jair Bolsonaro ficou evidente na visita do presidente brasileiro à Rússia. Há um terreno fértil para essa aliança política pessoal. Bolsonaro não tinha um projeto político claro quando foi eleito. Tem o mesmo discurso nacionalista, a agenda conservadora, uma aliança religiosa fundamentalista, o apoio de setores militares e do sistema de segurança, só ainda não controla os meios de comunicação e o Judiciário.

O isolamento de Bolsonaro no Ocidente, antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes mundiais, inclusive o presidente norte-americano Joe Biden, fez de Putin um parceiro natural na cena mundial, mesmo depois da guerra da Ucrânia. A conversa privada entre Bolsonaro e Putin em Moscou não ficou restrita à venda de carne e à compra de fertilizantes, estratégica para os dois países. Houve conversas no âmbito da cooperação tecnológica e militar, na qual a Rússia, sim, pode vir a fazer diferença. E, para a oposição, existe o fantasma da interferência de hackers russos nas eleições.

O posicionamento de Bolsonaro em relação à guerra na Ucrânia é um sinal de que há, de fato, um pacto entre ambos. Em Moscou, Bolsonaro havia agradecido a Putin pela histórica oposição da Rússia à internacionalização da Amazônia. Esse é um tema sensível para as Forças Armadas, principalmente o Exército. Existe outra fronteira de cooperação entre os dois países no âmbito militar: a venda de equipamentos e a transferência de tecnologia em áreas estratégicas da nossa indústria de Defesa, principalmente o projeto de submarino nuclear da Marinha. (Correio Braziliense – 17/07/2022)

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