Em 1850, o deputado baiano Silva Guimarães teve a estranha ideia de propor lei declarando livres os filhos das escravas nascidos a partir daquela data. A proposta foi obviamente arquivada porque era inconcebível romper o princípio jurídico de que o ventre da escrava pertencia ao seu senhor. Além disso, o recém-nascido era negro, não fazia sentido declará-lo livre sem alforria individual proclamada por seu dono. Cento e setenta anos depois, ainda parece estranha a ideia de pobre estudar na mesma escola de brasileiro rico.
Foi necessário esperar até 1871 para que a ideia do “ventre livre” chegasse ao parlamento com chance de aprovação. Depois de seis meses de debates, a lei foi aprovada por 56 votos contra 47 deputados que se opunham ao que consideravam injusta ilegalidade de “desapropriar os donos e sequestrar os filhos de escravas”. Para conseguir os votos, foi necessário determinar que os filhos só seriam livres ao completar 21 anos, as filhas aos 18. Achando pouco, o sistema encontrou forma de impedir que a lei fosse posta em prática: negar escola aos libertos. Os escravocratas perceberam que o ser humano nasce duas vezes: ao sair do ventre da mãe e ao entrar na escola.
Para abolir a escravidão de uma criança, não basta declarar livre o ventre de sua mãe, é preciso libertar o cérebro da criança ao receber conhecimento para se orientar e usufruir do mundo. O trabalho é servil por compra de escravo ou por negação de educação que assegure a possibilidade do trabalho livre. A Lei do Ventre Livre ficou incompleta por não libertar os cérebros. Os libertos receberam alforria para usar os pés e as mãos, mas não a educação necessária para usufruírem da liberdade.
Mais 20 anos foram necessários para abolir a escravidão no 13 de maio de 1888, mas manteve-se o mesmo antídoto à liberdade plena, negando escola aos pobres, descendentes sociais dos escravos; e mais 100 anos para aprovarem leis que assegurassem vaga em escola a toda criança a partir de quatro aos 17 anos; e adotar o programa Bolsa Escola, para dar aos pobres as condições de frequentarem aulas, no lugar do trabalho. Também para a criação dos programas de Merenda Escolar, Livro Didático, Piso Salarial Nacional para o Professor, Planos Nacionais de Educação I e II, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico, Base Nacional Comum Curricular. Apesar disso tudo, o sistema escravocrata não se submeteu à abolição plena da escravidão.
Na próxima semana, faz 134 anos da Abolição, mas a escravidão continua mantida por sua última trincheira: a desigualdade na qualidade da escola. Não sendo mais possível negar matrícula a todos, o escravismo entranhado na mente brasileira mantém as escolas divididas entre “escolas casa grande” e “escolas senzala”, de acordo com a renda da criança: os pobres, descendentes sociais dos escravos, separados dos descendentes sociais dos senhores.
Até hoje, a ideia de filhos de pobres estudarem na mesma escola de filhos de ricos parece tão estranha quanto, em 1850, a ideia de libertar os filhos das escravas. Ainda não se aceita a ideia de que a escola é a continuação do ventre; não se busca promover uma lei do cérebro livre para entrar no colégio independentemente da renda. Ainda vale a regra jurídica de que o conhecimento pertence a quem pode comprá-lo. A proposta do deputado Silva Guimarães foi arquivada no século 19, tanto quanto no século 21 foram arquivadas a proposta de lei que declarava falta de decoro o parlamentar matricular o filho em escola privada e a proposta de emenda à Constituição determinando prazo de 30 anos para todas as escolas serem de acesso público, mesmo não sendo estatais, todas parte de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base.
A escravidão sobreviverá enquanto os descendentes sociais dos escravos não tiverem seus filhos em escolas com a mesma qualidade daqueles são descendentes dos senhores de escravos: todas em um sistema único. A lei da abolição só estará completa quando, além do seu artigo “é declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil”, um outro determinar: “fica implantado um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base em todo território nacional”, que assegure a mesma qualidade na educação oferecida a cada brasileiro, independentemente da renda e do endereço dos pais. (Correio Braziliense – 03/05/2022)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)