Não é prudente apostar, como o faz Bolsonaro, na idiotice geral
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Com essa dedicatória aos vermes, o saudoso Machado de Assis abriu sua obra magna, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Digo saudoso Machado, assim como poderia deplorar a ausência de João Guimarães Rosa palmilhando as Veredas de seu Grande Sertão ou de José Lins do Rego apagando o fogo do Engenho onde vivia o menino.
Voltemos às memórias de Brás Cubas. Ele jurou “que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma”.
Na morte brasileira perpetrada pelo Capitão, esvai-se a consciência, avança a imobilidade social e moral, o corpo tem a mobilidade das plantas e das pedras imersas no lodo e os que desgovernam o país são coisa nenhuma.
Devo confessar que voltei ao Brás Cubas de Machado depois de uma longa conversa telefônica com meu velho e querido amigo Luis Antônio de Oliveira Lima. Quando lhe perguntei como estavam as coisas, ele me respondeu de pronto: coisas? Estamos no país do nada, de coisa nenhuma.
Ele prosseguiu: Bolsonaro é a realização do Nada. Logo senti que havia uma mensagem do Luiz Antônio, meu companheiro das Arcadas e da Faculdade de Filosofia, ainda na era da rua Maria Antônia.
O Ser e o Nada. O Nada do Ser. Jean Paul Sartre sugeriu que Heidegger, ao enfatizar as forças recíprocas de repulsa que o ser e não-ser exercem uns sobre os outros, o real surge da tensão resultante dessas forças antagônicas. Não raro, o Nada atropela o Ser.
Mas, mesmo diante do Nada da morte para narrar o Ser da sua vida, Machado não poderia imaginar os vermes adquirindo tal poder e potência nos trópicos. Poder e potência que habilitam as funéreas criaturas a roer as carnes do Brasil ainda vivo, na verdade moribundo. Se estivesse entre nós, o grande escritor certamente ficaria espantado com a indicação da cloroquina e a insistência na suspeita de fraude nas urnas eletrônicas.
Ficaria espantado, sim, como ficou Brás Cubas com sua própria teimosia e indignidade ao insistir no emplastro milagroso. “Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou sê-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão.
Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis”.
Brás Cubas confessa: “A minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira”.
A natureza caprichosa nos ofereceu as desgraças do Coronavírus e a História Sorrateira nos deixou à mercê das arapucas e desgovernos do Nada. No famoso conto “O Alienista”, Machado de Assis apresenta o Doutor Simão Bacamarte. Depois de encerrar toda a cidade no manicômio – inclusive a sua própria mulher – acabou por trancar a si mesmo. Se não é saudável propagandear emplastros milagrosos, cloroquinas e ataques às urnas eletrônicas, tampouco é prudente apostar,como o faz Bolsonaro, na idiotice geral. Imagina-se em plena sanidade quando há evidências de que grassa no Planalto uma epidemia de capota furada.
No conto “A Igreja do Diabo”, Machado de Assis surpreendeu o Demônio a conjeturar a fundação uma igreja. Ao ser questionado por Deus, respondeu que havia recém-concluído uma observação, começada há séculos: “As virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…”
A nova doutrina clamava que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram naturais e legítimas. “A soberba, a luxúria e a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença de que a mãe era robusta, e a filha, uma esgalgada”.
A venalidade era o exercício superior a todos os direitos. “Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal… como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?”.
No entanto, “à vista do preconceito social conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente”. As duas virtudes de Asmodeus, venalidade e hipocrisia, dançam abraçadas no País da Rachadinhas, ao som dos alaridos que proclamam: “Deus Acima de Tudo”.
Homenagem ao Primeiro de Maio, dia do Trabalho e da Literatura Brasileira. (Valor Econômico – 03/05/2022)
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp