Felipe Salto: Dinheiro não é capim. Acorda, Brasil!

Breno Pires, André Shalders e Julia Affonso escreveram uma das matérias mais importantes de 2022. O trabalho foi capa do Estadão de domingo (10 de abril). Apesar das 3,5 mil escolas inacabadas no País, estão jogando recurso público pela janela para sustentar a fantasia de erguer mais 2 mil. A questão é que o orçamento “disponível” não representa nem 0,5% do necessário para as novas escolas. Basta desses despautérios.

Que bom seria se tivéssemos, nas leis e na Constituição, normas a brecar essa sandice. Pois é, já as temos, como aprendi com Daniel Couri, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI). Mas nem só de regras, normas, leis, postulados, papel e rios de tinta vive o bom uso do dinheiro público. Eles precisam ser combinados à atividade política, à cultura, ao bom funcionamento das instituições e a valores, muitas vezes, ignorados.

A Emenda Constitucional n.º 102, de 2019, inseriu o parágrafo 12 ao artigo 165 para determinar que: “Integrará a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) (…) anexo com previsão de agregados fiscais e a proporção dos recursos para investimentos que serão alocados na Lei Orçamentária Anual para a continuidade daqueles em andamento”. Ainda, no parágrafo 14: “A Lei Orçamentária Anual poderá conter previsões de despesas para exercícios seguintes, com a especificação dos investimentos plurianuais e daqueles em andamento”.

Na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o artigo 45 manda priorizar as obras inacabadas: “(…) a lei orçamentária e as de créditos adicionais só incluirão novos projetos após adequadamente atendidos os em andamento (…), nos termos em que dispuser a Lei de Diretrizes Orçamentárias”.

Por sua vez, a LDO de 2022 (essa lei é anual) diz, no artigo 20, que o Orçamento só pode incluir novos projetos de investimento se as obras em andamento, inclusive as do Plano Plurianual, estiverem “adequadamente” contempladas. Também determina a alocação prioritária de recursos para concluir, no mínimo, uma etapa de cada projeto. Isto é, não se pode abandonar uma obra iniciada no passado, tampouco destinar recurso que não dê conta de financiar ao menos uma parte relevante de um projeto.

É assim que a lei já diz o óbvio: priorizem-se as obras em andamento, que já custaram uma montanha de dinheiro público! A ideia é simples, qualquer um entende. Uma obra inacabada não gera valor para a sociedade, mas custa ao erário. De que adianta ter um cemitério de obras paradas pelo País e iniciar, a torto e a direito, mais e mais projetos sem critério?

Como os competentes jornalistas mostraram, enquanto há milhares de escolas aguardando recursos para serem finalizadas, autoriza-se a construção de outras 2 mil. O truque é, na verdade, uma burla ao espírito da responsabilidade fiscal, para dizer o mínimo.

Vamo-nos entender: o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) não tem orçamento suficiente para construir as novas escolas prometidas, tampouco para terminar as outras 3,5 mil. Para fazer as duas coisas (R$ 7,6 bilhões), o orçamento teria de equivaler a 67 vezes o atual (de pouco mais de R$ 110 milhões). O dinheiro não existe! No máximo, vai se iniciar um conjunto de novas obras, ampliando o cemitério.

Essa espécie de milagre da multiplicação – em que um orçamento tão pequeno sustenta promessas bilionárias –, à primeira vista é criatividade pura. Empenha-se (primeira etapa do orçamento para realizar qualquer despesa pública) um porcentual mínimo para “iniciar” o projeto da escola, mas, no discurso, promete-se a escola inteirinha e funcionando. Ludibria-se o povo em ano de eleições. Rasgam-se a Constituição, a LRF e a LDO. “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.

O dinheiro público está sendo tratado como qualquer coisa que se encontra na rua. Os princípios da clareza, da especificação, da programação e da transparência passam longe desse estratagema. Que dizer do realismo nas projeções e programações? Como é que se promete um conjunto de escolas novas de quase R$ 6 bilhões, se o orçamento disponível não passa de R$ 0,1 bilhão?

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem informado o governo e o Congresso, há vários anos, sobre o problema das obras inacabadas. O chamado Fiscobras é um relatório anual sobre fiscalização de obras públicas encaminhado ao Congresso durante a tramitação da peça orçamentária. Na última edição, a Corte de Contas cobrou diretamente do Executivo a “definição de critérios objetivos para priorização dos projetos e investimentos de infraestrutura na elaboração do Orçamento, com identificação das ações prioritárias de cada ministério, com vistas ao melhor alinhamento das emendas orçamentárias com o planejamento estratégico governamental”.

O problema é que não bastam a lei, a atuação dos órgãos de controle e as denúncias da imprensa. Só vamos sair desta verdadeira feira livre que virou o Orçamento público quando houver planejamento e compromisso com a responsabilidade fiscal, isto é, com o bom uso do dinheiro público. Não há lei capaz de enfiar isso na cabeça de ninguém. Basta de escoar recurso público, que é escasso, pelo ralo. Dinheiro não é capim. Acorda, Brasil! (O Estado de S. Paulo – 12/04/2022)

FELIPE SALTO É DIRETOR-EXECUTIVO DA INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENDENTE (IFI) DO SENADO FEDERAL, COM MANDATO DE 2016 A 2022, E RESPONSÁVEL POR SUA IMPLANTAÇÃO AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A IFI

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