‘Não consigo respirar.’ Essa frase de George Floyd ecoou pelos Estados Unidos, e sua morte, por asfixia, inspirou o movimento Black Lives Matter e foi decisiva no ano das eleições.
O massacre de um jovem congolês no Rio e o assassinato de um homem negro que voltava do trabalho, assim como centenas de prisões injustificadas, também revelam uma asfixia angustiante e podem influenciar as eleições de 2022 no Brasil.
Como assim? Há gente com dificuldade de respirar porque a pandemia ainda está aí, com dificuldade de comer porque a fome aumentou. Como transformar todo esse drama em algo produtivo numa campanha eleitoral?
É uma pergunta que transcende o simples ato de votar. Quem tem consciência do buraco em que nos metemos — crise social, devastação dos recursos naturais, imagem internacional no chão — pode, pelo menos, pedir dos candidatos que se comportem à altura do desafio.
Isso significa também empurrar a política para novos horizontes. O caso do racismo é tipico. Se observamos o comportamento de algumas empresas, da própria publicidade, constata-se uma tentativa de adaptação aos novos tempos.
Mas, se olharmos nossos programas políticos, ao longo das últimas eleições, veremos que o tema combate ao racismo avançou menos.
De um modo geral, os candidatos reagem diante de um crime bárbaro como foi a morte do jovem congolês. Desde quando Abdias do Nascimento trouxe o tema para a política partidária e foi acolhido, na época pelo PDT, houve alguns passos.
Lembro-me da campanha de 1986 no Rio, em que o candidato a vice da chapa PT-PV era negro, de manifestações do tipo Fala Mulher e do abraço à Lagoa, introduzindo esses novos temas.
Mas, de lá para cá, muita água rolou. É preciso, mais que gestos simbólicos, programas sérios no combate ao racismo no Brasil.
Um dos temas que precisam ser desenvolvidos é a preparação das polícias. Só um trabalho educativo persistente pode alterar esse quadro de hoje, em que um negro andando é fuzilado por alguém que o confundiu com um ladrão, um negro motorizado é detido pela polícia querendo saber se o carro é mesmo dele. Ou, como diz a canção, um táxi não para, a viatura da polícia sempre para para um negro na calçada.
Quando uma situação dessas se configura, é todo um país que não consegue respirar. Na semana que passou, houve muita agitação nas redes porque um podcaster defendeu a legalização do Partido Nazista, e um comentarista de TV fez a saudação hitlerista no ar.
Não são totalmente ignorantes. Mas, para que posições como essas não contaminem, uma política de educação pode contribuir. Bons currículos de história contemporânea, programas sobre a escravidão e a importância e o sofrimento dos escravos na construção do país.
Tudo isso parece um pouco romântico diante de uma agitada campanha política. Se consideramos apenas Bolsonaro, seria inútil mencionar o tema. Sua Secretaria de Direitos Humanos ignora o racismo, e o presidente da Fundação Palmares é um adversário do movimento negro.
Mas, considerando a campanha no conjunto, de que adianta pura e simplesmente votar ou mesmo trocar argumentos apaixonados entre eleitores? A frase “não consigo respirar” deveria estar sempre em nossa cabeça, pois temos urgentemente de buscar ar fresco, abrir janelas.
A superação do horror bolsonarista não significa necessariamente um futuro brilhante. Se consideramos os setores mais avançados do capitalismo, veremos que a política brasileira está ainda na retaguarda.
As grandes empresas são preocupadas com o marketing, com a imagem. Políticas públicas podem ter uma profundidade maior, elas são a esperança de avanço mesmo em marés adversas.
Nas circunstâncias nacionais, se fizermos um paralelo com o futebol, poderíamos dizer aos eleitores: o importante não é apenas a vitória de um time, mas a afirmação de um plano de jogo.
Por mais que haja briga de torcidas ou insultos ao juiz da partida, não podemos nos descuidar do plano de jogo. Não há uma taça em disputa, mas a viabilidade de um país, as chances das novas gerações. (O Globo – 14/02/2022)
Fernando Gabeira, jornalista