Luiz Carlos Azedo: Arrocho na Lei Rouanet é um duro golpe contra a cultura

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

No mês do centenário da Semana de Arte Moderna, a cultura nacional sofreu um duro golpe do governo federal, que mudou as regras da Lei Rouanet e reduziu a capacidade de financiamento da nossa indústria cultural. É mais um elemento do ambiente político e ideológico tóxico que estamos vivendo, pautado pelo obscurantismo da política oficial. Não à toa, ocorre num momento tão simbólico como essa efeméride.

Marco da história de São Paulo, que emergia como centro dinâmico da economia brasileira e polo hegemônico da Primeira República, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma ruptura com o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica, que iria se somar e influenciar outras manifestações modernistas, que ocorriam no Rio de janeiro e outras capitais do país. Agora, parece que o governo quer fazer a roda da história voltar para trás e inviabilizar teatros, cinemas, a música, o audiovisual e, principalmente, a vida profissional de artistas, diretores e produtores culturais.

Há 110 anos, motivados pelo Centenário da Independência, artistas e intelectuais anunciaram o rompimento com as correntes literárias e artísticas anteriores, defendendo um novo ponto de vista estético e o compromisso com a independência cultural do país. Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, houve a exposição, no saguão, aberta ao público de 100 obras de arte que rompiam aqueles padrões, algumas das quais estão em grandes museus, e três sessões literárias e musicais noturnas. Inspirados nas vanguardas europeias e dispostos a promover a renovação da cultura brasileira, a força literária e artes plásticas conferiram à Semana de Arte de 1922 o caráter icônico que tem hoje, que se somou à mudança política que estava em curso, que iria desaguar na Revolução de 1930.

O modernismo no Brasil teve múltiplas manifestações, notadamente no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Pernambuco, mas nenhuma delas com a mesma capacidade de traduzir, naquele momento, o fenômeno da industrialização, da urbanização e da imigração de estrangeiros, como ocorria em São Paulo. Por ironia, neste ano do Bicentenário da Independência, estamos assistindo a uma grande onda regressista no plano cultural, patrocinada pelo governo Bolsonaro, cujo objetivo é desarticular a nossa cultura e levar ao ostracismo seus mais importantes representantes.

Desfinanciamento

A maneira de fazer isso é levar ao colapso o financiamento da cultura e seus protagonistas. Ontem, o Diário Oficial da União publicou mudanças nas regras da Lei de Incentivo à Cultura, de 1991, conhecida como Lei Rouanet, a mola mestra da indústria cultural brasileira. Assinada pelo secretário especial de Cultura do governo federal, Mario Frias, a instrução normativa define valores que podem ser captados por projeto e por empresas, bem como cachês pagos aos artistas.

Como se sabe, a Lei Rouanet autoriza produtores a buscarem investimento privado para financiar iniciativas culturais. Em troca, as empresas podem abater parcela do valor investido no Imposto de Renda.

O valor máximo a ser captado caiu para R$ 6 milhões, para concertos sinfônicos, museus e memória, óperas, bienais, teatro musical, datas comemorativas (carnaval, Páscoa, festas juninas, Natal e ano-novo), inclusão de pessoa com deficiência, projetos educativos e de internacionalização da cultura brasileira. O prazo de captação foi reduzido para dois anos.

No caso de artista ou modelo solo, o limite dos caches caiu de até R$ 45 mil para até R$ 3 mil por apresentação. No caso das orquestras, o limite que pode ser pago ao músico por apresentação passou de R$ 2,25 mil para R$ 3,5 mil, porém, para o maestro, caiu de R$ 45 mil para R$ 15 mil.

No audiovisual, os valores foram mantidos, pois já haviam sido reduzidos: médias metragens, R$ 600 mil; festivais, R$ 400 mil; jogos eletrônicos e aplicativos educativos e culturais, R$ 350 mil; programação semestral de rádio, R$ 100 mil; episódios de programas de tevê, R$ 50 mil; infraestrutura de sites, R$ 50 mil; produção e conteúdo de internet, R$ 150 mil; e episódio de web série, R$ 15 mil.

Desde a campanha eleitoral de 2018, o presidente Jair Bolsonaro defende mudanças na Lei Rouanet. Influenciado pelo falecido escritor Olavo de Carvalho, acredita que a política cultural é uma forma de dominação da esquerda, “comunista”, por meio do chamado “marxismo cultural”. O termo foi adotado pela extrema-direita dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, para atribuir aos “judeus da Escola de Frankfurt” a busca pelo controle da sociedade pelo comunismo.

Adaptado por Olavo de Carvalho, o termo vem sendo usado no Brasil para caracterizar uma suposta ameaça de ditadura gayzista, feminista, abortista, globalista, libertina etc. Na cabeça de Bolsonaro, a mudança mira a esquerda. Na realidade, aprofunda a crise de financiamento da indústria cultural, duramente atingida pela pandemia. (Correio Braziliense – 09/02/2022)

Leia também

Madonna reclama do calor, enquanto gaúchos estão debaixo d’água

NAS ENTRELINHASA catástrofe aproximou o presidente da República ao...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!