Jair Bolsonaro deu para demonstrar tamanho fastio com a tarefa de governar o Brasil que fica difícil entender por que, além da razão exclusivamente política, ele pretende gastar mundos e fundos para tentar se reeleger.
Duas das últimas manifestações do presidente de turno apontam uma completa ausência, da sua parte, de visão do que seja o país que administra (sic) há três anos.
Para se contrapor à avassaladora constatação de que foi o presidente que mais gastou nos cartões corporativos da Presidência, sobre os quais ainda colocou camadas adicionais de sigilo, o capitão (ou seus filhos, esses luminares da comunicação) teve uma ideia: por que não dar um dos seus apreciados rolês de motoca pela capital federal e se deixar fotografar coberto de farofa, comendo um frango com as mãos numa barraca de rua? Genial, não?
Não. Poucas cenas podem ser mais emblemáticas da falta de empatia do presidente com quem de fato carece de recursos para se alimentar, ou precisa muitas vezes fazer uso das mãos pois não dispõe de casa, cadeira, talheres e pratos.
Aqueles que estão nessas condições têm pelo parco alimento de que dispõem um respeito absoluto. Não desperdiçam sua exígua quantidade nem denotam certo asco pelo ato de comer, como o Bolsonaro que se deixou filmar numa tentativa mambembe de se mostrar como um “homem do povo”.
Dois dias depois da Operação Farofa, Bolsonaro decidiu sobrevoar municípios da Grande São Paulo mais afetados pelos desabamentos e pelas mortes provocados pelas fortes chuvas no estado nos últimos dias.
E se saiu com a pérola de que faltou “visão de futuro” àqueles que construíram casas em regiões sujeitas a desabamentos, ou irregulares. A frase choca pelo descolamento com a realidade histórica da moradia no Brasil.
Num país em que cada vez mais as grandes cidades veem as populações mais pobres forçadas a morar em favelas e ocupações de áreas de mananciais e encostas pela completa ausência de política habitacional da parte de todas as esferas de governos, falar que falta visão de futuro é, aí sim, total falta de visão do país que deveria governar.
Falta de tudo a quem é forçado (não se trata, de forma estrita, de uma decisão) a arriscar a própria vida e a da família construindo barracos precários em pirambeiras. Falta sobretudo Estado. Não aquele Estado demonizado pela direita reacionária ou aparelhado por uma esquerda retrógrada, mas o que utiliza seus recursos em benefício da parcela da população mais necessitada.
E é pelo fato de que Bolsonaro não tem compreensão rudimentar que seja dos problemas profundos de um país cada vez mais desigual e socialmente perverso que não adianta gastar os tubos para buscar tirar votos de Lula entre os mais pobres e, assim, se reeleger.
Essa estratégia foi enunciada pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, em entrevista ao GLOBO. Nesse cálculo, o Auxílio Brasil seria uma ferramenta milagrosa a transferir votos para Bolsonaro diretamente de seu maior antípoda.
Poderia funcionar? Sim, uma vez que nesse Brasil sem emprego de fato os programas de transferência de renda são poderosos vale-votos. Mas Bolsonaro não tem conexão real com essa parcela da população, e já demonstrou fartamente em declarações ao longo de sua carreira ter desprezo a mecanismos como o Bolsa Família, marca que não por acaso tratou de apagar.
Lula pode ter todos os problemas que tem e que parte dos eleitores vê nele e no PT. Mas é o político brasileiro que tem o maior legado no enfrentamento da fome e da miséria, além de uma conexão genuína com a realidade da população mais sofrida, pois vem dessa realidade. Isso não há farofa cenográfica ou sobrevoo de má vontade a áreas de tragédia que transplante. (O Globo – 02/02/2022)