Alberto Aggio: Possibilismo e realismo no radar da esquerda

O aforismo que vaticina que a política deve ser concebida como a “arte do possível” é de conhecimento generalizado e tem uma história secular. Faz parte do arsenal discursivo para justificar estratégias, orientações e, por vezes, reorientações políticas, independentemente da coloração ideológica ou da natureza do ator. É frequentemente usado visando a garantir apoio às opções feitas, mas não integralmente previstas, no exercício desta que ainda hoje alguns chamam de “nobre arte”. Por outro lado, é também secular o entendimento de que a política sempre esteve condicionada por relações de força historicamente determinadas.

Em razão disso, ao lado do “possibilismo”, o realismo comparece como outro elemento essencial que dá fundamento à política. Em registro positivo, ambos formam uma hendíadis essencial da política moderna. Pelo viés negativo, em determinadas situações, o excesso de “possibilismo” se transforma num pragmatismo exacerbado ao ferir de morte os mais legitimados parâmetros éticos, conspurcando a propensão ao mencionado realismo. Não há lei ou método previamente formulado ou minimamente delineado para estabelecer com antecipação os marcos e os limites entre “possibilismo” e realismo.

A juventude do final da década de 1960 criou o brado “peça sempre o impossível”, fazendo nascer uma nova subjetividade política no Ocidente. Apesar do avanço que isso representou no tocante ao enriquecimento do repertório de propostas emancipadoras para a humanidade em seu conjunto, do seu ventre nasceu uma cultura política de rechaço e rebeldia que, com o passar do tempo e somada a outras mais radicalizadas, fertilizaria o antagonismo aos sistemas políticos, alimentando muitas vezes o irrealismo político. Submetida ao fogo cerrado do existencialismo, do marxismo e de suas derivações e até do pós-modernismo, o realismo em política viu crescer contra si uma injustificada desconfiança.

Contrario sensu, o realismo firmou-se, contudo, como inerente à ação política no mundo moderno e mais ainda no terreno da democracia dos contemporâneos. Como afirmou Norberto Bobbio, o jogo da política, invariavelmente, é operado por meio tanto do discurso ex parte populi, quando se luta pelo poder, quanto pelo discurso ex parte principis, quando se conquista e se exerce o poder de Estado. O embate eleitoral, por natureza, configura-se como uma manifestação concentrada do primeiro momento, enquanto a estruturação da ação governativa ocupa o centro nevrálgico do segundo. Assim, no âmbito das democracias ocidentais é um enorme equívoco – na verdade uma sobrevivência do espírito de 1968 – a ideia estapafúrdia de que uma vez no governo não haveria mais sentido em se falar de esquerda já que, nessa interpretação, a identidade de esquerda somente seria real pela reiteração do discurso ex parte populi. Esse argumento adota, em essência, a ideia de que a identidade da esquerda se dá apenas e exclusivamente como uma força política “de oposição”, fora do poder. Tornando-se governo se perderia essa identidade e não seria mais esquerda, abolindo-se aqui a formulação “esquerda de governo” que tanto esteve presente, por exemplo, nas experiências da socialdemocracia europeia e mesmo na trajetória do Partido Comunista italiano (PCI) no pós-guerra. Em perspectiva distinta, é necessário ultrapassar essa visão e compreender que se a esquerda conseguir alcançar o governo, seja como um protagonista majoritário seja como parte de um governo constitucionalmente legítimo, se deva buscar uma sintonia entre os dois tempos e discursos mencionados por Bobbio, visando a garantir credibilidade e nova qualidade ao ator governante, a partir de suas novas funções.

O princípio básico do realismo para se pensar a política é o de que o ator necessita, além do conhecimento de si mesmo, proceder ao desvendamento das relações de força que o fizeram vir ao mundo. Será de imensa utilidade, como anotou Antonio Gramsci, inspirando-se no Marx do “Prefácio de 1859”, se o ator, de saída, levar em consideração dois dos seus fundamentos históricos. O primeiro afirma que nenhuma sociedade se coloca tarefas para as quais ainda não existam condições necessárias e suficientes para solucioná-las ou que estejam em via de aparecer e se desenvolver; o segundo enfatiza que nenhuma sociedade se dissolve ou pode ser substituída antes de ter desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações.

Esses dois fundamentos condicionam e determinam o tipo de realismo que demanda a política da democracia, um valor que deveria ser caríssimo à esquerda hodierna. Não se trata, obviamente, de um princípio ideológico, mas histórico, no qual se definem as relações de forças entre Estado e sociedade civil bem como o terreno do conflito e do consenso entre as diversas forças políticas e sociais. Daí emergem no texto gramsciano as metáforas “Oriente e Ocidente”, as noções de “guerra de movimento e guerra de posição”, e, por fim, a categoria de “hegemonia civil”. O resgate que faz Gramsci do texto de Marx repõe a questão da transformação num outro tempo histórico, distinto da analítica leninista ou da teoria da ação de Trotsky que tinham sentido no atraso europeu, num contexto de falimento das estruturas de poder do czarismo e de uma revolução em ativação. O tempo da democracia dos contemporâneos, no entanto, é outro: é o tempo da revolução passiva no qual os atores políticos democráticos estão desafiados a elaborar uma nova cultura política e a encontrar uma nova identidade programática; em suma, a buscar novas possibilidades para a política da democracia.

Por desconhecimento ou má fé, muitos intelectuais, jornalistas ou políticos aceitaram de bom grado a existência de um vínculo entre Gramsci e o PT, na verdade, uma conexão desprovida de sentido, dentre outras razões, porque Gramsci pensava a política como hegemonia, mas não como supremacia de uma classe que domina o Estado e menos ainda como hegemonia de um “governo do partido dos trabalhadores”. É preciso, portanto, refazer conexões e superar auto-enganos para que a esquerda recolha o que há de melhor no seu patrimônio teórico, em diálogo permanente com o pensamento mais avançado de renovação da cultura democrática do nosso tempo.

Isso é tanto mais necessário senão pelo fato de que na situação em que nos encontramos a esquerda só poderá encontrar o seu “justo protagonismo” se ampliar o seu arco de alianças visando a reconstrução do país depois do desastre que ela mesma protagonizou no governo Dilma, desgraçadamente seguido pela destruição quase que integral das instituições imposta pelo governo de Jair Bolsonaro. Para tanto, o ponto de partida está dado pelas referências que mencionamos acima, a saber: as relações de força do nosso tempo estabelecem a democracia como um corolário irrefutável no seu primeiro termo (aquele que diz respeito a como a sociedade busca resolver seus problemas) e, no segundo (aquele que indica as formas de desenvolvimento de uma sociedade), deve-se reconhecer a existência de um capitalismo mundialmente potente, que tem demonstrado capacidade de superar suas crises, mas necessita de regulações incontornáveis. Um quadro de relações de força historicamente determinadas por um mundo multipolar, interdependente e globalizado, eivado de conflitos e ameaças, que pede cada vez mais realismo na política e menos fabulações versadas no impossível.

O cenário mundial e brasileiro se configura como um imenso “canteiro de obras” e não como uma metrópole erguida em meio ao deserto. Mobilizar Gramsci para refletir sobre as dinâmicas desse mundo grande e vertiginoso será sempre auspicioso, desde que se impeça o risco desse autor ser transformado, como fazem alguns grupos de uma esquerda ancilosada que grassa entre nós, em um monumento, teoricamente congelado e politicamente instrumentalizado –, e por isso, improdutivo.

Vivemos tempos de grandes mudanças. Tudo se altera a cada instante, produzindo novas realidades no mundo do trabalho e da vida. O impacto dessas transformações na dimensão do político, pelo seu retardo natural em acompanhá-las, gera uma inércia de desajustes, além de visíveis contradições e impasses. Uma esquerda carregada do realismo que aqui se explicita não pode mais ser aquela esquerda que vicejou no século XX. Ela deve urgentemente ajustar o seu radar e, para isso, há uma história do pensamento vinculado a ela para lhe auxiliar nessa tarefa. (Publicado simultaneamente em Estado da Arte e Horizontes Democráticos em 08 de dezembro de 2021)

Alberto Aggio, professor titular de História da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Franca-SP

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