Eliane Cantanhêde: É tempo de revisitar a redemocratização, espetacular obra de engenharia política do Brasil

Sair da ditadura exigiu coragem e apoio de trabalhadores, empresários, estudantes, professores, médicos, advogados, jornalistas, Igreja Católica, os melhores cérebros militares e a classe média brasileira

Depois de apoiar a ditadura militar durante anos na Arena e no PDS, os então senadores Marco Maciel (PE), Guilherme Palmeira (AL) e Jorge Bornhausen (SC) tiveram um papel relevante ao liderar a dissidência parlamentar e aderir ativamente às “Diretas-Já” e à articulação para a eleição do oposicionista Tancredo Neves, do MDB, em 1984.

Ex-governador de Pernambuco e vice-presidente nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel morreu no sábado de covid, agravada por uma longa doença. Ex-governador de Alagoas, Guilherme Palmeira morreu em maio do ano passado. Ex-governador de Santa Catarina, Bornhausen continua curioso e ativo, aos 83 anos, na iniciativa privada.

Alinhados ao general e ex-presidente Ernesto Geisel, mentor e garantidor da “abertura lenta, gradual e segura”, e ao ex-governador de Minas Aureliano Chaves, vice do general João Figueiredo no último governo militar, os três, Maciel, Palmeira e Bornhausen, chacoalharam o PDS, abriram canais com setores militares insatisfeitos com o governo Figueiredo e integraram a heterogênea frente de resistência e de pressão pela redemocratização e as “Diretas-Já”.

Com o fim da “emenda Dante de Oliveira” na Câmara, por 22 votos, o passo seguinte foi manter e ampliar a frente contra a eleição do ex-governador de São Paulo Paulo Maluf. Era certo e sabido que ele venceria a convenção do PDS, contra os candidatos do governo e da ala geiselista, mas a dissidência do partido foi decisiva para derrotá-lo no colégio eleitoral, ou seja, no Congresso.

A derrota foi acachapante, o eleito foi o moderado Tancredo e assim o Brasil encerrou 21 anos de torturas, mortes e desaparecimentos, “sem um tiro, sem uma gota de sangue”. O fim do regime não foi em guerra, foi em festa. Maciel, Palmeira e Bornhausen, assim como Aureliano e senadores e governadores como Agripino Maia (RN) e Hugo Napoleão (PI), tiveram lugar assegurado.

O maranhense José Sarney aderiu num estágio mais avançado e com estardalhaço, ao chegar à convenção nacional do PDS com um revólver na cinta. Governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, o ACM, só pulou no barco em segurança, com ventos mais amenos. Mas Sarney foi o vice na chapa e virou presidente porque Tancredo adoeceu antes da posse. E ACM se arvorou “dono” do grupo.

Como os dissidentes liderados por Maciel, Palmeira e Bornhausen já tinham o carimbo de “Frente Liberal”, o partido criado por eles em 1985, primeiro ano da redemocratização, virou o Partido da Frente Liberal (PFL), que se afirmou a ponto de ter Marco Maciel na vice de Fernando Henrique. Um vice que todo presidente pediu a Deus: estudioso, discreto, trazia soluções, não problemas.

A morte de Marco Maciel traz luzes sobre essa história, tão recente, mas tão esquecida, que contém bons ensinamentos a quem hoje tem liderança e enorme responsabilidade. O primeiro deles é tão velho e surrado quanto útil: a união faz a força, já o preconceito e os interesses puramente pessoais dividem e implodem as melhores estratégias.

Sair da ditadura exigiu coragem e apoio de trabalhadores, empresários, estudantes, professores, médicos, advogados, jornalistas, Igreja Católica, os melhores cérebros militares e a classe média brasileira. A esquerda assumiu a linha de frente, mas a redemocratização foi uma obra de engenharia de esquerda, centro e direita responsável.

Como toda obra, exige manutenção constante, principalmente em meio a tensões e riscos às instituições, com o populismo audacioso aglomerando incautos e combatendo não só isolamento, máscaras e vacinas na pandemia, mas a própria democracia. Não custa lembrar: democracia é cheia de defeitos, mas ainda não se inventou nada melhor. (O Estado de S. Paulo – 15/06/2021)

ELIANE CANTANHÊDE, COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL (PE) E DO TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA

Leia também

O peso das alianças nas eleições de SP e BH

Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) tem 45% de intenções de votos; em Belo Horizonte, o prefeito Fuad Noman (PSD) assumiu a liderança, com 46%.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Santa raiva

A tragédia educacional precisa ser vista como a da escravidão.

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!