General preso não faz democracia

A democracia tem razões para sentir otimismo com a prisão de um general golpista, mas deve entender que generais presos não fazem tropa democrática

Há uma parede na sede do Correio Braziliense onde estão as páginas mais criativas e expressivas já publicadas pelo jornal. Neste domingo, a primeira página com a palavra “Preso” acima da foto do general Braga Netto merece ir para esse panteão de manchetes. Em uma palavra, todo um discurso: “as instituições civis são capazes de prender um general quatro estrelas que conspirava contra a democracia”. O discurso e a manchete seriam ainda mais fortes se tivessem colocado a foto do general fardado. Ao escolher a foto com traje civil, o Correio teve o cuidado de não expor as Forças Armadas. O mesmo cuidado os democratas devem ter ao comemorar o fato de um militar golpista estar preso, sabendo que um general preso não faz a democracia.

Para tanto, é preciso que a instituição militar, toda a tropa, e que a política, todos políticos, sejam comprometidos com a ética no comportamento e nas prioridades. A democracia tem razões para sentir otimismo com a prisão de um general golpista, mas deve entender que generais presos não fazem tropa democrática. É preciso promover nova mentalidade entre os militares; e que os políticos civis sejam comprometidos com a causa pública, sensíveis aos interesses da população e íntegros no exercício dos cargos. Sem isso, ameaçam a democracia apodrecendo-a por dentro.

Apesar do farto noticiário sobre o inusitado de um general golpista preso, nenhuma pesquisa apurou ainda qual a reação da tropa à prisão. Sabe-se que os comandos estão respeitando a decisão da justiça e o trabalho da polícia, mas não se sabe se a caserna está mais indignada com a postura dos golpistas querendo impedir a posse dos vitoriosos, e até com intenção de assassiná-los, ou se estão indignados com a incompetência para levar adiante o plano. O Ministério da Defesa não parece saber ou estaria escondendo se a tropa considera Braga Netto e sua turma como criminosos golpistas traidores da Constituição e da pátria ou se patriotas incompetentes para vencer uma batalha pelo futuro do país livre do que os militares consideram corruptos civis. Não há manifestação de repúdio da tropa aos golpistas, mas há descontentamento com a falta de respeito de Braga Netto aos colegas que ele teria chamado de covardes por serem legalistas.

Em quase meio século de democracia, nenhum dos presidentes enfrentou a questão militar no Brasil: adotar formação legalista, comportamento hierárquico e não apenas protocolar em relação ao poder civil eleito, consciência democrática, respeito às instituições. Nenhum presidente expôs aos militares de hoje o conhecimento pleno dos crimes nos 21 anos de ditadura, tortura, assassinatos, covas anônimas, censura; não tentou punir os culpados. Aceita-se a permanência de um sistema que põe as armas com poder moderador sobre as urnas, contra o que julgam incompetência, corrupção ou simplesmente ideias exóticas. Sobretudo, todos os oito presidentes civis se comportam assustados e temerosos diante do poder militar.

Os políticos democratas precisam entender que os golpes ocorrem mais pelo apodrecimento interno da democracia dos civis do que por reação golpista de militares. Lembrar que parte substancial da população apoiou o golpe em 1964 e que, em 2022, apenas um milhão de eleitores barrou o presidente golpista nas urnas. O eleitorado prefere a democracia, mas não está satisfeito com o Brasil construído nos últimos 40 anos: sente que diminuiu a penúria, mas a pobreza continua, a concentração de renda se mantém e a desigualdade se transformou em apartheid social; os privilégios e benefícios foram ampliados; a produtividade não aumentou; a economia não sai de uma renda média baixa; a corrupção se espalhou e ficou normal; a violência chegou ao nível de uma guerra civil; o número de analfabetos adultos não diminuiu; o número de crianças matriculadas aumentou, mas não cresceu a percentagem dos que concluem educação de base com qualidade; o presente pode até parecer melhor, mas os anos de democracia não estão acenando para um país eficiente, sem privilégios e sem corrupção, sem pobreza, com renda bem distribuída, com juventude esperançosa e motivada.

Feliz a democracia em que um juiz legalista tem poder para prender um general golpista, mas nenhum juiz empoderado ou general preso constrói a democracia; é preciso que os políticos civis sejam respeitados e usem o sistema democrático para abolir a corrupção no comportamento e nas prioridades, atendam aos sonhos da população, enfrentem a secular questão militar do Brasil, ao ponto que a ideia de golpe não faça mais parte do imaginário dos militares. (Correio Braziliense – 18/12/2024 – https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/12/7014051-general-preso-nao-faz-democracia.html)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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