Ninguém escreve ou faz a História sozinho

Um dos maiores equívocos que um historiador pode cometer é desconhecer as contribuições daqueles que o precederam. Às vezes, mais do que um equívoco, é também uma mesquinhez. A História vive em permanente construção, já ensinava um grande mestre que tive, Pierre Vilar. Com um grande amigo seu, Nelson Werneck Sodré, eu aprendi a necessidade de nunca perder de vista que a História é um processo, e que devemos sempre unir o particular ao geral para entender a sua marcha. E que toda obra data, por maior que seja, de certa forma. 

Nelson abordou inúmeros terrenos do conhecimento, da História à Geografia, da Literatura à Política, da Estética à Cultura Brasileira, sem deixar de ser um observador atento das ciências naturais. Não posso esquecer a sua generosidade em aceitar dividir comigo a publicação do livro Tudo é Política, que assinamos e lançamos juntos no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, o grande historiador marxista e general de Exército participava de um lançamento, o qual se deu no Paço Imperial, palco das lutas memoráveis pela Independência brasileira. Para alguém como ele, que dedicou toda sua vida à transformação social do país, não poderia haver um local mais indicado ou simbólico. 

Tenho muitas saudades ainda hoje das conversas em sua residência, à Rua Dona Mariana, em Botafogo. Ele me recebia em uma pequena varanda fechada no fundo de uma ampla sala e conversávamos sobre os mais variados assuntos, com foco na atividade política e na História. Nem preciso dizer o quanto foi gratificante para mim participar da semana de debates em Marília em homenagem a Nelson Werneck. Desse encontro, surgiu o livro coletivo Entre o sabre e a pena, organizado por Paulo Ribeiro Cunha e Fátima Cabral. 

Nelson Werneck era vizinho de outro grande estudioso nosso, o ensaísta e homem público Afonso Arinos de Melo Franco. Os magníficos estudos de Nelson Werneck e Afonso Arinos dão prova do valor da nossa produção intelectual. Pois, como escreveu certa vez Herman Hesse, “as obras mais antigas são as que envelhecem menos”. Ao mesmo título que Nelson, Afonso Arinos foi um admirador da obra e da trajetória pessoal de Astrojildo Pereira, chegando a dizer que Astrojildo foi a “maior aventura intelectual” do seu tempo. Isso vindo de um conservador no plano político não era pouco: Afonso Arinos demonstrou aqui toda sua coragem. 

Homens como Nelson Werneck Sodré, Afonso Arinos e o próprio Astrojildo Pereira nos ensinam que a História não pode nunca se afastar das fontes da vida. São essas fontes, experimentadas pelos homens de forma associada, que materializam de fato o percurso da História. Nelson me comoveu muitas vezes. Sabendo, por intermédio de meu pai, que eu estava começando a preparar uma dissertação sobre o Quilombo dos Palmares na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, fez questão de me remeter, pelos correios, obras importantes, como O Reino negro de Palmares, trabalho muito bem documentado de Mário Martins de Freitas e editado pela Biblioteca do Exército. Eu me recordo, em particular, que Nelson Werneck Sodré não nutria muitas ilusões em relação à historiografia francesa, considerando a nossa mais avançada conceitualmente, mais progressista até. 

Hoje, há um verdadeiro modismo em relação a toda e qualquer produção francesa, mesmo a mais vazia. Vivi oito anos de minha vida na França, frequentando suas universidades, institutos e bibliotecas, e penso que Nelson tinha razão. Não creio que se possa ler livros ou apostar em tendências culturais como quem consome uma novidade atrás da outra. Parece que o colonialismo ainda teima em permanecer dentro de nós.

Além do nosso Nelson Werneck Sodré, outro historiador que muito me incentivou foi Hélio Silva, com quem trabalhei em duas oportunidades nos anos 80 do século XX, no Centro de Memória Social da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Creio que ninguém conhecia melhor a História factual do período republicano do que ele. Sua memória era prodigiosa e eu o vi citar, concomitantemente, para duas secretárias no Centro de Memória Social Brasileira da Candido Mendes, dois livros para uma série que preparou sobre os presidentes da República brasileira. Conversar com ele era receber diariamente uma aula de política. Anos depois, eu li que o teólogo italiano Tomás de Aquino procedia da mesma forma quando escrevia. Interessante. Anarquista na juventude, Hélio Silva foi amigo de Astrojildo Pereira, apesar de haver uma diferença de idade entre eles (pouco mais de dez anos). Eu o ouvia, fascinado, narrar suas peripécias com Astrojildo pela boemia carioca. 

Posteriormente, o historiador se converteu ao Catolicismo, terminando a sua longa e rica existência como monge em uma pequena cidade do Sul de Minas Gerais, Delfim Moreira. Guardo até hoje as cartas generosas que Hélio Silva escreveu para mim. Extremamente corajoso, homem de arraigadas convicções democráticas, ele foi o primeiro a denunciar em livro o assassinato, sob tortura, do militante Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, que também seria morta pelos agentes da ditadura militar. Não tem como a História não mexer conosco. José Honório Rodrigues foi outro historiador com quem convivi durante um certo período. Cheguei a frequentar algumas vezes a sua casa, no Jardim de Alah, travando conhecimento com sua mítica biblioteca, uma das mais completas do país, com cerca de 30 mil volumes, divididos entre o Rio de Janeiro e a cidade de Petrópolis, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Era um erudito e homem muito responsável e criterioso em suas afirmações. Humanista, figura de grande retidão, o historiador José Honório Rodrigues, assim como Hélio Silva, também era de extração católica.

Quando eu editei o suplemento cultural do Jornal do País, José Honório, além do próprio Hélio Silva, colaborou com a publicação. José Honório foi diretor de instituições da qualidade do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional, prestando relevantes serviços à memória histórica do país. O Brasil deve muito a ele. As formulações que estampou na obra Conciliação e reforma no Brasil, publicada em 1964 pela Civilização Brasileira, do saudoso Ênio Silveira, continuam pautando as discussões sobre o processo histórico nacional. 

Luiz Carlos Azedo, um dos maiores articulistas da imprensa brasileira, sempre se refere a esta obra em seus profícuos comentários jornalísticos. Dois outros historiadores me marcaram pessoalmente ainda. São, respectivamente, Alberto da Costa e Silva e Joel Rufino dos Santos. Do embaixador Alberto da Costa e Silva guardo na lembrança os dias que com ele convivi em Évora, Portugal, durante um colóquio internacional sobre a escravidão, no final do século XX. Fomos quatro historiadores brasileiros convocados pela Unesco, a saber: o próprio Alberto da Costa e Silva, Joel Rufino dos Santos, Valdemir Zamparoni e eu. Presentes, apenas 17 historiadores de todo o mundo. Eu me senti extremamente honrado com essa convocação. 

Depois, mantive alguns contatos com o embaixador Alberto da Costa e Silva na Academia Brasileira de Letras, então presidida por ele. Como José Honório Rodrigues, também membro da ABL, Costa e Silva sentiu a importância da África para a conformação nacional do Brasil. Não conheci ninguém, de sua geração, que escrevesse melhor do que Alberto da Costa e Silva, com um texto mais sóbrio e elegante. O embaixador, como eu o chamava, teve uma escola fantástica: o Itamaraty. A mesma por onde passaram o Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha e San Thiago Dantas. Devo dizer que o conhecimento que travei ao longo da vida com alguns acadêmicos me fizeram respeitar a Academia Brasileira de Letras como um espaço democrático importantíssimo para o desenvolvimento da cultura nacional. 

Eu cheguei a propor à Editora Europa, de Jorge e Alexandre Sávio, a publicação de um livro com este título: o PCB na ABL, tamanha a presença de membros do Partido Comunista Brasileiro na Academia Brasileira de Letras. Pena que a iniciativa não prosperou. De qualquer maneira, um dos momentos mais significativos de minha vida se deu quando Cícero Sandroni, que presidia a ABL por ocasião do centenário de morte Machado de Assis, me convidou para a cerimônia que ali se desenrolou em homenagem ao extraordinário escritor. Simbolicamente, foram convidadas cem pessoas e o Cícero, com sua generosidade, quis que eu estivesse entre elas. 

Com Joel Rufino, trabalhei por algum tempo na Editora Terceiro Mundo. Era muito competente e tinha uma bonita história de vida, inteiramente voltada para a luta pela cidadania. Seu livro de memórias, Assim foi (se me parece), traça o retrato de toda uma geração, ouso dizer. Trata-se de um relato excepcional. Extremamente educado e solidário, creio que posso dizer que fomos amigos. Também fiz um documentário sobre ele, O vermelho e o negro, incluído na série Brasileiros e Militantes. Para mim, os maiores historiadores brasileiros do século XX, além daqueles que tive o prazer de conviver de forma mais assídua e já citados acima, foram Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Maria Yedda Linhares, José Antônio Gonsalves de Mello, José Roberto do Amaral Lapa, Jacob Gorender, Francisco Iglesias, Eulália Maria Lahmeyer Lobo, Fernando Novais, Luiz Alberto Moniz Bandeira, José Luiz Werneck da Silva, Carlos Guilherme Mota, Emília Viotti da Costa, Ernani da Silva Bruno e Marly Vianna. 

Maria Yedda Linhares eu conheci em Paris, ainda nos anos 70, chegando a ir uma vez ao seu apartamento (salvo engano, por essa época ela ficava boa parte do seu tempo em Toulouse, onde lecionava). Seus trabalhos sobre o mundo agrário brasileiro são uma referência para todos nós. Marly Vianna é uma das pessoas mais competentes e combativas que conheço. E de uma honestidade intelectual a toda prova. Ela dedicou uma faixa importante do seu trabalho ao exame da trajetória revolucionária brasileira do século XX, da Coluna Prestes ao Levante Aliancista, passando pelos episódios de outubro de 1930. Foi um grande prazer ter sido convidado para apresentar um texto em homenagem a Marly Vianna, por ocasião da entrega a ela da medalha de Mérito Pedro Ernesto, por parte da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, em agosto de 2024. 

Com Moniz Bandeira eu tive vários contatos ao longo da vida. Foi um dos pesquisadores mais sérios e profícuos que conheci, deixando uma obra fundamental para o conhecimento da história política brasileira, e isso desde os primórdios da Independência. Com José Luiz Werneck da Silva, que nos deixou precocemente, aprendi ótimas lições sobre o ofício da História. Eu tive alguns contatos com ele, chegando a entrevistá-lo em um programa que coordenei na Rádio Roquete-Pinto, em meados da década de 80, sob a direção do saudoso historiador e jornalista Procópio Mineiro, uma das mais figuras mais competentes e corretas com quem trabalhei na vida. Apesar de só ter mantido contato telefônico com Amaral Lapa, que residia em São Paulo, guardo dele uma excelente lembrança. Impossível conhecer a história das trocas comerciais do Brasil sem examinar a sua obra. Nelson Werneck Sodré o respeitava muito. 

Dos historiadores e cientistas sociais da minha geração, com alguns poucos anos de diferença em relação a mim, para mais ou para menos, desejaria destacar Maria Alice Rezende de Carvalho, Mary del Priore, Paulo Ribeiro Cunha, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Luiz Felipe de Alencastro. Maria Alice foi da minha turma de estudantes de Ciências Sociais ainda no Brasil e raramente conheci uma pessoa tão talentosa e dedicada quanto ela. Uma Acadêmica em estado quase puro, profunda conhecedora dos primórdios da nossa República. Mary del Priore é outra grande admiração minha, pelo empenho em trabalhar a História como Ciência e, ao mesmo tempo, valer-se de uma linguagem acessível ao público em geral. A atenção que dá a alguns temas novos, como o papel da mulher na vida brasileira, é realmente louvável. É uma amiga querida, que, toda vez que encontro, é um verdadeiro prazer. 

Paulo Ribeiro Cunha vem examinando os embates travados na área militar entre constitucionalistas e golpistas. Ele também se dedica ao exame das ações de autodefesa armada perpetradas pelo PCB nos anos 50 e 60. É muito sério e rigoroso em suas pesquisas e mais um querido amigo que fiz, desde o final dos anos 90. O Paulo é sociólogo de formação, mas eu costumo dizer a ele que é um historiador de alma.

Atuei com Francisco Carlos, estudioso sério do chamado tempo presente, no livro que organizei para a Editora Europa, História pré-colonial do Brasil. Luiz Felipe de Alencastro, que chegou a ser meu professor em Vincennes, na França, apontou seu olhar para o mundo Atlântico, revelando a importância do eixo Portugal, Angola e Brasil na construção da nossa nacionalidade. Theodor Zwinger, um médico e pensador suíço impregnado de ideais da Renascença, escreveu certa vez que era sinal de uma “nobre honestidade preservar e celebrar com gratidão a memória daqueles que consideramos úteis” ao conhecimento. O estudioso suíço pertencia a um período em que não havia a cultura científica de um lado e a cultura artística ou literária de outro. Não quero dizer com isso que as diferenças não existam, mas que o diálogo não pode ser interrompido. Um historiador do porte de Nelson Werneck Sodré sabia perfeitamente disso. A desconfiança dos intelectuais em relação às Ciências exatas, por exemplo, pode ter ocorrido da Revolução Industrial para cá, os literatos se comportando como os operários ludistas, que quebravam as máquinas. 

Não houve muita mudança nesse cenário desde então, com exceção do Círculo de Viena, reunindo, nos anos 20, filósofos e cientistas na capital da Áustria. O escritor Charles Percy Snow abordou, com brilhantismo, essa questão da desconfiança em relação à tecnologia, sobretudo, há cerca de cinco décadas. Em nosso tempo, um dos poucos a perceber e praticar isso é o filósofo Edgar Morin. Entre nós, eu me recordo que Ferreira Gullar reivindicava a necessidade de os jornais abrirem seus espaços para uma atividade crítica de caráter científico, como já se dava com os livros e, em menor escala, com as Artes Plásticas. Cristovam Buarque é um desses que reúne formação humanística e técnico-científica. Alguns jornais universitários, como o Jornal da USP e o Jornal da Unicamp, vêm preenchendo um pouco esse papel. Ainda bem. Seja como for, eu me considero um privilegiado por esse convívio todo e pelo aprendizado que esses historiadores e outros estudiosos me proporcionaram. Todos tiveram peso em minha percepção do trabalho historiográfico. Ninguém escreve a História sozinho, como tampouco ninguém faz a História sozinho.

*Ivan Alves Filho, historiador

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